13 junho, 2012

2ª CARTA CHINELA


CARTA 2ª
Em que se mostra a piedade que Fanfarrão fingiu no princípio do seu governo, para chamar a si todos os negócios.
As brilhantes estrelas já caíam
E a vez terceira os galos já cantavam,
Quando, prezado amigo, punha o selo 
Na volumosa carta, em que te conto
5 -- Do nosso imortal chefe a grande entrada; 
E refletindo, então, ser quase dia,
A despir-me começo, com tal ânsia, 
Que entendo que inda estava o lacre quente 
Quando eu já, sobre os membros fatigados,
10 -- Cuidadoso, estendia a grosa manta.

Não cuides, Doroteu, que brandas penas
Me formam o colchão macio e fofo;
Não cuides que é de paina a minha fronha
E que tenho lençóis de fina holanda,
15 -- Com largas rendas sobre os crespos folhos;
Custosos pavilhões, dourados leitos
E colchas matizadas, não se encontram
Na casa mal provida de um poeta,
Aonde há dias que o rapaz que serve
20 -- Nem na suja cozinha acende o fogo.
Mas, nesta mesma cama, tosca e dura,
Descanso mais contente, do que dorme
Aquele, que só põe o seu cuidado
Em deixar a seus filhos o tesouro
25 -- Que ajunta, Doroteu, com mão avara,
Furtando ao rico e não pagando ao pobre.
Aqui... mas onde vou, prezado amigo?
Deixemos episódios que não servem,
E vamos prosseguindo a nossa história.

30 -- Fui deitar-me ligeiro, como disse,
E mal estendo nos lençóis o corpo,
Dou um sopro na vela, os olhos fecho
E pelos dedos rezo a muitos santos,
Por ver se chega mais depressa o sono,
35 -- Conselho que me deram sábias velhas.
Já, meu bom Doroteu, o sono vinha:
Umas vezes dormindo, ressonava,
Outras vezes, rezando, inda bulia
Com os devotos beiços, quando sinto
40 -- Passar um carro, que me abala o leito.
Assustado desperto, os olhos abro
E, conhecendo a causa que me acorda,
Um tanto impaciente o corpo viro,
Fecho os olhos de novo e cruzo os braços
45 -- Para ver se outra vez me torna o sono.
Segunda vez o sono já tornava,
Quando o estrondo percebo de outro carro;
Outra vez, Doroteu, o corpo volto,
Outra vez me agasalho, mas que importa?
50 -- Já soam dos soldados grossos berros,
Já tinem as cadeias dos forçados,
Já chiam os guindastes, já me atroam
Os golpes dos machados e martelos
E, ao pé de tanta bulha, já não posso
55 -- Mais esperança ter de algum sossego.

Salto fora da cama, acendo a vela,
À banca vou sentar-me exasperado,
E, por ver se entretenho as longas horas,
Aparo a minha pena, o papel dobro
60 -- E com mão, que ainda treme de cansada,
Não sei, prezado amigo, o que te escrevo.
Só sei que o que te escrevo são verdades
E que vêm muito bem ao nosso caso.

Apenas, Doroteu, o nosso chefe
65 -- As rédeas manejou, do seu governo,
Fingir-nos intentou que tinha uma alma
Amante da virtude. Assim foi Nero.
Governou aos romanos pelas regras
Da formosa justiça, porém logo
70 -- Trocou o cetro de ouro em mão de ferro. 
Manda, pois, aos ministros lhe dêem listas
De quantos presos as cadeias guardam,
Faz a muitos soltar e aos mais alenta
De vivas, bem fundadas esperanças.
75 -- Estranha ao subalterno, que se arroga
O poder castigar ao delinqüente
Com troncos e galés; enfim ordena
Que aos presos, que em três dias não tiverem
Assentos declarados, se abram logo
80 -- Em nome dele, chefe, os seus assentos.

Aquele, Doroteu, que não é santo, 
Mas quer fingir-se santo aos outros homens, 
Pratica muito mais, do que pratica 
Quem segue os sãos caminhos da verdade.
85 -- Mal se põe nas igrejas, de joelhos, 
Abre os braços em cruz, a terra beija, 
Entorta o seu pescoço, fecha os olhos, 
Faz que chora, suspira, fere o peito, 
E executa outras muitas macaquices
90 -- Estando em parte onde o mundo as veja. 
Assim o nosso chefe, que procura 
Mostrar-se compassivo, não descansa 
Com estas poucas obras: passa a dar-nos
Da sua compaixão maiores provas.

95 -- Tu sabes, Doroteu, qual seja o crime 
Dos soldados que furtam aos soldados, 
E sabes muito bem que pena incorram 
Aqueles que viciam ouro e prata. 
Agora, Doroteu, atende o como
100 -- Castiga o nosso chefe em um sujeito
Estes graves delitos, que reputa 
Ainda menos do que leves faltas.

Apanha um militar aos camaradas 
Do soldo uma porção. Astuto e destro,
105 -- Para não se sentir o grave furto, 
Mistura nos embrulhos, que lhes deixa, 
Igual quantia de metal diverso.
Faz-se queixa ao bom chefe deste insulto, 
Sim, faz-se ao chefe queixa, mas debalde,
110 -- Que este Hércules não cinge a grossa pele, 
Nem traz na mão robusta a forte clava,
Para guerra fazer ao torpe Caco.

Já leste, Doroteu, a D. Quixote? 
Pois eis aqui, amigo, o seu retrato;
115 -- Mas diverso nos fins, que o doido Mancha 
Forceja por vencer os maus gigantes 
Que ao mundo são molestos, e este chefe 
Forceja por suster, no seu distrito, 
Aqueles que se mostram mais velhacos.
120 -- Não pune, doce amigo, como deve, 
Das sacrossantas leis a grave ofensa; 
Antes, benigno, manda ao bom Matúsio 
Que, do seu ouro próprio se ressarça 
Aos aflitos roubados toda a perda.
125 -- Já viste, Doroteu, igual desordem?
O dinheiro de um chefe, que a lei guarda,
Acode aos tristes órfãos e às viúvas;
Acode aos miseráveis, que padecem
Em duras, rotas camas, e socorre,
130 -- Para que honradas sejam, as donzelas,
Porém não paga furtos, por que fiquem
Impunes os culpados, que se devem,
Para exemplo, punir com mão severa.

Envia, Doroteu, vizinho chefe
135 -- Ao nosso grande chefe outro soldado
Por vários crimes convencido e preso.
Lança-se o tal soldado, de joelhos
Aos pés do seu herói, suspira e treme,
Não nega que ferira e que matara,
140 -- Mas pede que lhe valha a mão piedosa 
Que tudo pode, que ele aperta e beija.
Pergunta-lhe o bom chefe se os seus crimes
Divulgados estão, e o camarada,
Com semblante já leve, lhe responde
145- Que suas graves culpas foram feitas
Em sítios mui distantes desta praça.
Então, então o chefe, compassivo,
Manda tirar os ferros dos seus braços, 
Dá-lhe um salvo-conduto, com que possa,
150 -- Contanto que na terra não se saiba, 
fazer impunemente insultos novos.

Caminha, Doroteu, à força um negro,
Conforme as leis do reino bem julgado.
Tu sabes, Doroteu, que o próprio Augusto
155 -- Estas fatais sentenças não revoga
Sem um justo motivo, em que se firme
Do seu perdão a causa. Também sabes
Que estas mesmas mercês se não concedem
Senão por um decreto, em que se expende
160 -- Que o sábio rei usou, por motu-próprio,
Do mais alto poder que vem do cetro.
Agora, Doroteu, atende e pasma:
Por um simples despacho, manda o chefe
Que o triste padecente se recolha.
165 -- Assenta: vale tanto, lá na corte,
Um grande — El-Rei — impresso, quanto vale 
Em Chile, um — Como pede — e o seu garrancho.

Aonde, louco chefe, aonde corres
Sem tino e sem conselho? Quem te inspira
170 -- Que remitir as penas é virtude?
E, ainda a ser virtude, quem te disse
Que não é das virtudes, que só pode,
Benigna, exercitar a mão augusta?
Os chefes, bem que chefes, são vassalos
175 -- E os vassalos não têm poder supremo.
O mesmo grande Jove, que modera
O mar, a terra e o céu, não pode tudo,
Que ao justo só se estende o seu império.

O povo, Doroteu, é como as moscas
180 -- Que correm ao lugar, aonde sentem
O derramado mel; é semelhante
Aos corvos e aos abutres, que se ajuntam
Nos ermos, onde fede a carne podre.
À vista, pois, dos fatos, que executa
185 -- O nosso grande chefe, decisivos
Da piedade que finge, a louca gente
De toda a parte corre a ver se encontra
Algum pequeno alívio à sombra dele.
Não viste, Doroteu, quando arrebenta
190 -- Ao pé de alguma ermida a fonte santa, 
Que a fama logo corre e todo o povo 
Concebe que ela cura as graves queixas? 
Pois desta sorte entende o néscio vulgo 
Que o nosso general lugar-tenente,
195 -- Em todos os delitos e demandas
Pode de absolvição lavrar sentenças.
Não há livre, não há, não há cativo
Que ao nosso Santiago não concorra.
Todos buscam ao chefe e todos querem,
200 -- Para serem bem vistos, revestir-se
Do triste privilégio de mendigos.
Um as botas descalça, tira as meias
E põe no duro chão os pés mimosos;
Outro despe a casaca mais a veste
205 -- E de vários molambos mal se cobre; 
Este deixa crescer a ruça barba, 
Com palhas de alhos se defuma aquele; 
Qual as pernas emplastras e move o corpo 
Metendo nos sovacos as muletas;
210 -- Qual ao torto pescoço dependura,
Despido, o braço que só cobre o lenço;
Uns, com bordão, apalpam o caminho,
Outros, um grande bando lhe apresentam
De sujas moças, a quem chamam filhas.
215 -- Já foste, Doroteu, a um convento
De padres franciscanos, quando chegam
As horas de jantar? Passaste, acaso,
Por sítio em que morreu mineiro rico,
Quando da casa sai pomposo enterro?
220 -- Pois eis aqui, amigo, bem pintada 
A porta, mais a rua deste chefe 
Nos dias de audiência. Oh! quem pudera 
Nestes dias meter-se um breve instante, 
A ver o que ali vai na grande sala!
225 -- Escusavas de ler os entremezes
Em que os sábios poetas introduzem,
Por interlocutores, chefes asnos.
Um pede, Doroteu, que lhe dispense
Casar com uma irmã da sua amásia;
230 -- Pede outro que lhe queime o mau processo,
Onde está criminoso por ter feito
Cumprir exatamente um seu despacho;
Diz este que os herdeiros não lhe entregam
Os bens, que lhe deixou, em testamento,
235 -- Um filho de Noé; aquele ralha
Contra os mortos,juízes, que lhe deram,
Por empenhos e peitas, a sentença,
Em que toda a fazenda lhe tiraram:
Um quer que o devedor lhe pague logo;
240 -- Outro, para pagar, pertende espera;
Todos, enfim, concluem que não podem 
Demandas conservar, por serem pobres 
E grandes as despesas, que se fazem 
Nas casas dos letrados e cartórios.
245 -- Então o grande chefe, sem demora,
Decide os casos todos que lhe ocorrem,
Ou sejam de moral, ou de direito,
Ou pertençam, também, à medicina,
Sem botar (que ainda é mais) abaixo um livro
250 -- Da sua sempre virgem livraria.
Lá vai uma sentença revogada
Que já pudera ter cabelos brancos;
Lá se manda que entreguem os ausentes
Os bens ao sucessor, que não lhes mostra
255 -- Sentença que lhe julgue a grossa herança. 
A muitos, de palavra, se decreta 
Que em pedir os seus bens não mais prossigam; 
A outros se concedem breves horas 
Para pagarem somas que não devem.
260 -- Ah! tu, meu Sancho Pança, tu que foste 
Da Baratária o chefe, não lavraste 
Nem uma só sentença tão discreta! 
E que queres, amigo, que suceda? 
Esperavas, acaso, um bom governo
265 -- Do nosso Fanfarrão? Tu não o viste 
Em trajes de casquilho, nessa corte? 
E pode, meu amigo, de um peralta 
Formar-se, de repente, um homem sério? 
Carece, Doroteu, qualquer ministro
270 -- Apertados estudos, mil exames, 
E pode ser o chefe onipotente 
Quem não sabe escrever uma só regra
Onde, ao menos, se encontre um nome certo? 
Ungiu-se, para rei do povo eleito,
275 -- A Saul, o mais santo que Deus via. 
Prevaricou Saul, prevaricaram, 
No governo dos povos, outros justos. 
E há de bem governar remotas terras 
Aquele que não deu, em toda vida
280 -- Um exemplo de amor à sã virtude? 
As letras, a justiça, a temperança 
Não são, não são morgados que fizesse 
A sábia natureza, para andarem, 
Por sucessão nos filhos dos fidalgos.

285 -- Do cavalo andaluz, é, sim, provável 
Nascer, também, um potro de esperança, 
Que tenha frente aberta, largos peitos, 
Que tenha alegres olhos e compridos, 
Que seja, enfim, de mãos e pés calçado;
290 -- Porém de um bom ginete também pode
Um catralvo nascer, nascer um zarco.
Aquele mesmo potro, que tem todos
Os formosos sinais que aponta o Rego,
Carece, Doroteu, correr em roda
295 -- Do grande picadeiro muitos meses,
Para um e outro lado, necessita
Que o destro picador lhe ponha a sela
E que, montando nele, pouco a pouco,
O faça obedecer ao leve toque
300 -- Do duro cabeção, da branda rédea. 
Dos mesmos, Doroteu... porém já toca,
Ao almoço a garrida da cadeia:
Vou ver se dormir posso, enquanto duram 
Estes breves instantes de sossego, 
305 -- Que, sem barriga farta e sem descanso, 
Não se pode escrever tão longa história.

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