Em que se contam as injustiças e violências que Fanfarrão
executou por causa de uma cadeia, a que deu princípio.
Que triste, Doroteu, se pôs
a tarde!
Assopra o vento sul, e densa nuvem
Os horizontes cobre; a grossa chuva,
Caindo das biqueiras dos telhados,
5 -- Forma regatos, que os portais inundam.
Rompem os ares colubrinas fachas
De fogo devorante, e ao longe soa
De compridos trovões o baixo estrondo.
Agora, Doroteu, ninguém passeia,
10 -- Todos em casa estão, e todos buscam
Divertir a tristeza, que nos peitos
Infunde a tarde, mais que a noite feia.
O velho Altimidonte, certamente,
Tem postas nos narizes as cangalhas
15 – E, revolvendo os grandes, gordos livros.
C'os dedos inda sujos de tabaco,
Ajunta ao mau processo muitas folhas
De vãs autoridades carregadas.
O nosso bom Dirceu, talvez que esteja,
20 -- Com os pés escondidos no capacho,
Metido no capote, a ler gostoso
O seu Vergílio, o seu Camões e Tasso.
O terno Floridoro a estas horas
No mole espreguiceiro se reclina
25 -- A ver brincar, alegres, os filhinhos:
Um já montado na comprida cana
E outro pendurado no pescoço
Da mãe formosa, que risonho abraça.
O gordo Josefino está deitado,
30 -- Nada lhe importa, nem do mundo sabe:
Ao som do vento, dos trõvoes e chuva,
Como em noite tranqüila, dorme e ronca;
O nosso Damião, enfim, abana
Ao lento fogo com que, sábio, tira
35 -- Os úteis sais da terra, e o teu Critilo,
Que não encontra, aqui, com quem murmure,
Quando só murmurar lhe pede o gênio,
Pega na pena e desta sorte voa,
De cá, tão longe, a murmurar contigo.
40 -- Já disse, Doroteu, que o nosso chefe,
Apenas principia a governar-nos,
Nos pertende mostrar que tem um peito
Muito mais terno e brando do que pedem
Os severos ofícios do seu cargo.
45 -- Agora, cuidarás, prezado amigo,
Que as chaves das cadeias já não abrem,
Comidas da ferrugem? Que as algemas,
Como trastes inúteis, se furtaram?
Que o torpe executor das graves penas
50 -- Liberdade ganhou? Que já não temos
Descalços guardiães, que à fonte levem,
Metidos nas correntes, os forçados?
Assim, prezado amigo, assim devia
Em Chile acontecer, se o nosso chefe
55 -- Tivesse, em governar, algum sistema.
Mas, meu bom Doroteu, os homens néscios
Às folhas dos olmeiros se comparam:
São como o leve fumo, que se move
Para partes diversas, mal os ventos
60 -- Começam a apontar, de partes várias.
Ora, pois, doce amigo, atende o como
No seu contrário vício, degenera
A falsa compaixão do nosso chefe,
Qual o sereno mar, que, num instante,
65 -- As ondas sobre as ondas encapela.
Pertende, Doroteu, o nosso chefe
Erguer uma cadeia majestosa,
Que possa escurecer a velha fama
Da torre de Babel e mais dos grandes,
70 -- Custosos edifícios que fizeram,
Para sepulcros seus, os reis do Egito.
Talvez, prezado amigo, que imagine
Que neste monumento se conserve,
Eterna, a sua glória, bem que os povos
75 -- Ingratos não consagrem ricos bustos
Nem montadas estátuas ao seu nome.
Desiste, louco chefe, dessa empresa:
Um soberbo edifício levantado
Sobre ossos de inocentes, construído
80 -- Com lágrimas dos pobres, nunca serve
De glória ao seu autor, mas, sim, de opróbrio.
Desenha o nosso chefe, sobre a banca,
Desta forte cadeia o grande risco,
À proporção do gênio e não das forças
85 -- Da terra decadente, aonde habita.
Ora, pois, doce amigo, vou pintar-te
Ao menos o formoso frontispício.
Verás se pede máquina tamanha
Humilde povoado, aonde os grandes
90 -- Moram em casas de madeira a pique.
Em cima de espaçosa escadaria
Se forma do edifício a nobre entrada
Por dois soberbos arcos dividida;
Por fora destes arcos se levantam
95 -- Três jônicas colunas, que se firmam
Sobre quadradas bases e se adornam
De lindos capitéis, aonde assenta
Uma formosa, regular varanda;
Seus balaústres são das alvas pedras
100 -- Que brandos ferros cortam sem trabalho.
Debaixo da cornija, ou projectura,
Estão as armas deste reino abertas
No liso centro de vistosa tarja.
Do meio desta frente sobe a torre
105 -- E pegam desta frente, para os lados,
Vistosas galerias de janelas,
A quem enfeitam as douradas grades.
E sabes, Doroteu, quem edifica
Esta grande cadeia? Não, não sabes.
110 -- Pois ouve, que eu to digo: um pobre chefe
Que na corte habitou em umas casas
Em que já nem se abriam as janelas.
E sabes para quem? Também não sabes.
Pois eu também to digo: para uns negros
115 -- Que vivem, quando muito, em vis cabanas,
Fugidos dos senhores, lá nos matos.
Eis aqui, Doroteu, ao que se pode
Muito bem aplicar aquela mofa
Que faz o nosso mestre, quando pinta
120 -- Um monstro meio peixe e meio dama.
Na sábia proporção é que consiste
A boa perfeição das nossas obras.
Não pede, Doroteu, a pobre aldeia
Os soberbos palácios, nem a corte
125 -- Pode, também, sofrer as toscas choças.
Para haver de suprir o nosso chefe
Das obras meditadas as despesas,
Consome do senado os rendimentos
E passa a maltratar ao triste povo
130 -- Com estas nunca usadas violências:
Quer cópia de forçados que trabalhem
Sem outro algum jornal mais que o sustento,
E manda a um bom cabo que lhe traga
A quantos quilombolas se apanharem
135 -- Em duras gargalheiras. Voa o cabo,
Agarra a um e outro, e num instante
Enche a cadeia de alentados negros.
Não se contenta o cabo com trazer-lhe
Os negros que têm culpas, prende e manda
140 -- Também, nas grandes levas, os escravos
Que não têm mais delitos que fugirem
Às fomes e aos castigos, que padecem
No poder de senhores desumanos.
Ao bando dos cativos se acrescentam
145 -- Muitos pretos já livres e outros homens
Da raça do país e da européia,
Que, diz ao grande chefe, são vadios
Que perturbam dos povos o sossego.
Não há, meu Doroteu, quem não se molde
150 -- Aos gestos e aos costumes dos maiores.
Brincando, os inocentes os imitam,
Se às tropas se exercitam, eles fingem
As hórridas batalhas. Se se fazem
Devotas procissões, também carregam
155 -- Aos ombros os andores e as charolas.
Os mesmos magistrados se revestem
Do gênio e das paixões de quem governa.
Se o rei é piedoso, são benignos
Os severos ministros, se é tirano,
160 -- Mostram os pios corações de feras.
Por isso, Doroteu, um chefe indigno
É muito e muito mau, porque êle pode
A virtude estragar de um vasto império.
Os nossos comandantes, que conhecem
165 -- A vontade do chefe, também querem
Imitar deste cabo o ardente zelo.
Enviam para as pedras os vadios
Que, na forma das ordens, mandar devem
Habitar em desterro novas terras.
170 -- Ora, pois, doce amigo, já que falo
Nos nossos comandantes, será justo
Que te dê destes bichos uma idéia.
A gente, Doroteu, que não se alista
Nas tropas regulares forma corpos
175 -- De bisonha ordenança. Não há terra
Sem ter um corpo destes. Os seus chefes
Ao capitão maior estão sujeitos,
E são os que se chamam comandantes,
Porque as partes comandam destes terços.
180 -- Estes famosos chefes, quase sempre
Da classe dos tendeiros são tirados.
Alguns, inda depois de grandes homens,
Se lhe faltam os negros, a quem deixam
O governo das vendas, não entendem
185 -- Que infamam as bengalas, quando pesam
A libra de toucinho e quando medem
O frasco de cachaça. Agora atende,
Verás que desta escória se levanta
De magistrados uma nova classe.
190 -- Aos ricos taverneiros, disfarçados
Em ar de comandantes, manda o chefe
Que tratem da polícia e que não deixem
Viver, nos seus distritos, as pessoas
Que forem revoltosas. Quer que façam
195 -- A todos os vadios uns sumários
E que, sem mais processos, os remetam
Para remotas partes, sem que destas
Jurídicas sentenças, se faculte
Algum recurso para mor alçada.
200 -- Já viste, Doroteu, um tal desmando?
As santas leis do reino não concedem
Ao magistrado régio que execute,
No crime o seu julgado, e o nosso chefe
Quer que dêem as sentenças sem apelo
205 -- Incultos comandantes, que nem sabem
Fazer um bom diário do que vendem!
Concedo, caro amigo, que estes homens
São uns grandes consultos, que meteram
Os corpos do direito nos seus cascos.
210 -- Ainda assim pergunto: e como pode
O chefe conceder-lhes esta alçada?
Ignora a lei do reino, que numera
Entre os direitos próprios dos augustos
A criação dos novos magistrados?
215 -- O grande Salomão lamenta o povo
Que sobre o trono tem um rei menino;
Eu lamento a conquista, a quem governa
Um chefe tão soberbo e tão estulto
Que, tendo já na testa brancas repas,
220 -- Não sabe ainda que nasceu vassalo.
Os néscios comandantes e o bom cabo,
Que fez o nosso herói geral meirinho,
Remetem, nas correntes, povo imenso.
Parece, Doroteu, que temos guerras;
225 -- Que, para recrutar as companhias,
De toda a parte vêm chorosas levas.
Aqui, prezado amigo, principia
Esta triste tragédia; sim, prepara,
Prepara o branco lenço, pois não podes
230 -- Ouvir o resto, sem banhar o rosto
Com grossos rios de salgado pranto.
Nas levas, Doroteu, não vêm somente
Os culpados vadios; vem aquele
Que a dívida pediu ao comandante;
235 -- Vem aquele que pôs impuros olhos
Na sua mocetona, e vem o pobre
Que não quis emprestar-lhe algum negrinho,
Para lhe ir trabalhar na roça e lavra.
Estes tristes, mal chegam, são julgados
240 -- Pelo benigno chefe a cem açoites.
Tu sabes, Doroteu, que as leis do reino
Só mandam que se açoitem com a sola
Aqueles agressores, que estiverem,
Nos crimes, quase iguais aos réus de morte.
245 -- Tu também não ignoras que os açoites
Só se dão, por desprezo, nas espáduas,
Que açoitar, Doroteu, em outra parte
Só pertence aos senhores, quando punem
Os caseiros delitos dos escravos.
250 -- Pois todo este direito se pretere:
No pelourinho a escada já se assenta,
Já se ligam dos réus os pés e os braços,
Já se descem calções e se levantam
Das imundas camisas rotas fraldas,
255 -- Já pegam dois verdugos nos zorragues,
Já descarregam golpes desumanos,
Já soam os gemidos e respingam
Miúdas gotas de pisado sangue.
Uns gritam que são livres, outros clamam
260 -- Que as sábias leis do rei os julgam brancos.
Este diz que não tem algum delito
Que tal rigor mereça, aquele pede
Do justo acusador, ao céu, vingança.
Não afrouxam os braços os verdugos,
265 -- Mas, antes, com tais queixas, se duplica
A raiva nos tiranos, qual o fogo
Que aos assopros dos ventos ergue a chama.
Às vezes, Doroteu, se perde a conta
Dos cem açoites, que no meio estava,
270 -- Mas outra nova conta se começa.
Os pobres miseráveis já nem gritam:
Cansados de gritar, apenas soltam
Alguns fracos suspiros, que enternecem.
Que é isso, Doroteu, tu já retiras
275 -- Os olhos do papel? Tu já desmaias?
Já sentes as moções, que alheios males
Costumam infundir nas almas ternas?
Pois és, prezado amigo, muito fraco,
Aprende a ter o valor do nosso chefe,
280 -- Que à janela se pôs e a tudo assiste
Sem voltar o semblante para a ilharga.
E pode ser, amigo, que não tenha
Esforço, para ver correr o sangue,
Que em defesa do trono se derrama.
285 -- Aos pobres açoitados manda o chefe
Que, presos nas correntes dos forçados,
Vão juntos trabalhar. Então se entregam
Ao famoso tenente, que os governa
Como sábio inspetor das grandes obras.
290 -- Aqui, prezado amigo, principiam
Os seus duros trabalhos. Eu quisera
Contar-te o que eles sofrem, nesta carta,
Mas tu, prezado amigo, tens o peito,
Dos males que já leste, magoado,
295 -- Por isto é justo que suspenda a história
Enquanto o tempo não te cura a chaga.
Assopra o vento sul, e densa nuvem
Os horizontes cobre; a grossa chuva,
Caindo das biqueiras dos telhados,
5 -- Forma regatos, que os portais inundam.
Rompem os ares colubrinas fachas
De fogo devorante, e ao longe soa
De compridos trovões o baixo estrondo.
Agora, Doroteu, ninguém passeia,
10 -- Todos em casa estão, e todos buscam
Divertir a tristeza, que nos peitos
Infunde a tarde, mais que a noite feia.
O velho Altimidonte, certamente,
Tem postas nos narizes as cangalhas
15 – E, revolvendo os grandes, gordos livros.
C'os dedos inda sujos de tabaco,
Ajunta ao mau processo muitas folhas
De vãs autoridades carregadas.
O nosso bom Dirceu, talvez que esteja,
20 -- Com os pés escondidos no capacho,
Metido no capote, a ler gostoso
O seu Vergílio, o seu Camões e Tasso.
O terno Floridoro a estas horas
No mole espreguiceiro se reclina
25 -- A ver brincar, alegres, os filhinhos:
Um já montado na comprida cana
E outro pendurado no pescoço
Da mãe formosa, que risonho abraça.
O gordo Josefino está deitado,
30 -- Nada lhe importa, nem do mundo sabe:
Ao som do vento, dos trõvoes e chuva,
Como em noite tranqüila, dorme e ronca;
O nosso Damião, enfim, abana
Ao lento fogo com que, sábio, tira
35 -- Os úteis sais da terra, e o teu Critilo,
Que não encontra, aqui, com quem murmure,
Quando só murmurar lhe pede o gênio,
Pega na pena e desta sorte voa,
De cá, tão longe, a murmurar contigo.
40 -- Já disse, Doroteu, que o nosso chefe,
Apenas principia a governar-nos,
Nos pertende mostrar que tem um peito
Muito mais terno e brando do que pedem
Os severos ofícios do seu cargo.
45 -- Agora, cuidarás, prezado amigo,
Que as chaves das cadeias já não abrem,
Comidas da ferrugem? Que as algemas,
Como trastes inúteis, se furtaram?
Que o torpe executor das graves penas
50 -- Liberdade ganhou? Que já não temos
Descalços guardiães, que à fonte levem,
Metidos nas correntes, os forçados?
Assim, prezado amigo, assim devia
Em Chile acontecer, se o nosso chefe
55 -- Tivesse, em governar, algum sistema.
Mas, meu bom Doroteu, os homens néscios
Às folhas dos olmeiros se comparam:
São como o leve fumo, que se move
Para partes diversas, mal os ventos
60 -- Começam a apontar, de partes várias.
Ora, pois, doce amigo, atende o como
No seu contrário vício, degenera
A falsa compaixão do nosso chefe,
Qual o sereno mar, que, num instante,
65 -- As ondas sobre as ondas encapela.
Pertende, Doroteu, o nosso chefe
Erguer uma cadeia majestosa,
Que possa escurecer a velha fama
Da torre de Babel e mais dos grandes,
70 -- Custosos edifícios que fizeram,
Para sepulcros seus, os reis do Egito.
Talvez, prezado amigo, que imagine
Que neste monumento se conserve,
Eterna, a sua glória, bem que os povos
75 -- Ingratos não consagrem ricos bustos
Nem montadas estátuas ao seu nome.
Desiste, louco chefe, dessa empresa:
Um soberbo edifício levantado
Sobre ossos de inocentes, construído
80 -- Com lágrimas dos pobres, nunca serve
De glória ao seu autor, mas, sim, de opróbrio.
Desenha o nosso chefe, sobre a banca,
Desta forte cadeia o grande risco,
À proporção do gênio e não das forças
85 -- Da terra decadente, aonde habita.
Ora, pois, doce amigo, vou pintar-te
Ao menos o formoso frontispício.
Verás se pede máquina tamanha
Humilde povoado, aonde os grandes
90 -- Moram em casas de madeira a pique.
Em cima de espaçosa escadaria
Se forma do edifício a nobre entrada
Por dois soberbos arcos dividida;
Por fora destes arcos se levantam
95 -- Três jônicas colunas, que se firmam
Sobre quadradas bases e se adornam
De lindos capitéis, aonde assenta
Uma formosa, regular varanda;
Seus balaústres são das alvas pedras
100 -- Que brandos ferros cortam sem trabalho.
Debaixo da cornija, ou projectura,
Estão as armas deste reino abertas
No liso centro de vistosa tarja.
Do meio desta frente sobe a torre
105 -- E pegam desta frente, para os lados,
Vistosas galerias de janelas,
A quem enfeitam as douradas grades.
E sabes, Doroteu, quem edifica
Esta grande cadeia? Não, não sabes.
110 -- Pois ouve, que eu to digo: um pobre chefe
Que na corte habitou em umas casas
Em que já nem se abriam as janelas.
E sabes para quem? Também não sabes.
Pois eu também to digo: para uns negros
115 -- Que vivem, quando muito, em vis cabanas,
Fugidos dos senhores, lá nos matos.
Eis aqui, Doroteu, ao que se pode
Muito bem aplicar aquela mofa
Que faz o nosso mestre, quando pinta
120 -- Um monstro meio peixe e meio dama.
Na sábia proporção é que consiste
A boa perfeição das nossas obras.
Não pede, Doroteu, a pobre aldeia
Os soberbos palácios, nem a corte
125 -- Pode, também, sofrer as toscas choças.
Para haver de suprir o nosso chefe
Das obras meditadas as despesas,
Consome do senado os rendimentos
E passa a maltratar ao triste povo
130 -- Com estas nunca usadas violências:
Quer cópia de forçados que trabalhem
Sem outro algum jornal mais que o sustento,
E manda a um bom cabo que lhe traga
A quantos quilombolas se apanharem
135 -- Em duras gargalheiras. Voa o cabo,
Agarra a um e outro, e num instante
Enche a cadeia de alentados negros.
Não se contenta o cabo com trazer-lhe
Os negros que têm culpas, prende e manda
140 -- Também, nas grandes levas, os escravos
Que não têm mais delitos que fugirem
Às fomes e aos castigos, que padecem
No poder de senhores desumanos.
Ao bando dos cativos se acrescentam
145 -- Muitos pretos já livres e outros homens
Da raça do país e da européia,
Que, diz ao grande chefe, são vadios
Que perturbam dos povos o sossego.
Não há, meu Doroteu, quem não se molde
150 -- Aos gestos e aos costumes dos maiores.
Brincando, os inocentes os imitam,
Se às tropas se exercitam, eles fingem
As hórridas batalhas. Se se fazem
Devotas procissões, também carregam
155 -- Aos ombros os andores e as charolas.
Os mesmos magistrados se revestem
Do gênio e das paixões de quem governa.
Se o rei é piedoso, são benignos
Os severos ministros, se é tirano,
160 -- Mostram os pios corações de feras.
Por isso, Doroteu, um chefe indigno
É muito e muito mau, porque êle pode
A virtude estragar de um vasto império.
Os nossos comandantes, que conhecem
165 -- A vontade do chefe, também querem
Imitar deste cabo o ardente zelo.
Enviam para as pedras os vadios
Que, na forma das ordens, mandar devem
Habitar em desterro novas terras.
170 -- Ora, pois, doce amigo, já que falo
Nos nossos comandantes, será justo
Que te dê destes bichos uma idéia.
A gente, Doroteu, que não se alista
Nas tropas regulares forma corpos
175 -- De bisonha ordenança. Não há terra
Sem ter um corpo destes. Os seus chefes
Ao capitão maior estão sujeitos,
E são os que se chamam comandantes,
Porque as partes comandam destes terços.
180 -- Estes famosos chefes, quase sempre
Da classe dos tendeiros são tirados.
Alguns, inda depois de grandes homens,
Se lhe faltam os negros, a quem deixam
O governo das vendas, não entendem
185 -- Que infamam as bengalas, quando pesam
A libra de toucinho e quando medem
O frasco de cachaça. Agora atende,
Verás que desta escória se levanta
De magistrados uma nova classe.
190 -- Aos ricos taverneiros, disfarçados
Em ar de comandantes, manda o chefe
Que tratem da polícia e que não deixem
Viver, nos seus distritos, as pessoas
Que forem revoltosas. Quer que façam
195 -- A todos os vadios uns sumários
E que, sem mais processos, os remetam
Para remotas partes, sem que destas
Jurídicas sentenças, se faculte
Algum recurso para mor alçada.
200 -- Já viste, Doroteu, um tal desmando?
As santas leis do reino não concedem
Ao magistrado régio que execute,
No crime o seu julgado, e o nosso chefe
Quer que dêem as sentenças sem apelo
205 -- Incultos comandantes, que nem sabem
Fazer um bom diário do que vendem!
Concedo, caro amigo, que estes homens
São uns grandes consultos, que meteram
Os corpos do direito nos seus cascos.
210 -- Ainda assim pergunto: e como pode
O chefe conceder-lhes esta alçada?
Ignora a lei do reino, que numera
Entre os direitos próprios dos augustos
A criação dos novos magistrados?
215 -- O grande Salomão lamenta o povo
Que sobre o trono tem um rei menino;
Eu lamento a conquista, a quem governa
Um chefe tão soberbo e tão estulto
Que, tendo já na testa brancas repas,
220 -- Não sabe ainda que nasceu vassalo.
Os néscios comandantes e o bom cabo,
Que fez o nosso herói geral meirinho,
Remetem, nas correntes, povo imenso.
Parece, Doroteu, que temos guerras;
225 -- Que, para recrutar as companhias,
De toda a parte vêm chorosas levas.
Aqui, prezado amigo, principia
Esta triste tragédia; sim, prepara,
Prepara o branco lenço, pois não podes
230 -- Ouvir o resto, sem banhar o rosto
Com grossos rios de salgado pranto.
Nas levas, Doroteu, não vêm somente
Os culpados vadios; vem aquele
Que a dívida pediu ao comandante;
235 -- Vem aquele que pôs impuros olhos
Na sua mocetona, e vem o pobre
Que não quis emprestar-lhe algum negrinho,
Para lhe ir trabalhar na roça e lavra.
Estes tristes, mal chegam, são julgados
240 -- Pelo benigno chefe a cem açoites.
Tu sabes, Doroteu, que as leis do reino
Só mandam que se açoitem com a sola
Aqueles agressores, que estiverem,
Nos crimes, quase iguais aos réus de morte.
245 -- Tu também não ignoras que os açoites
Só se dão, por desprezo, nas espáduas,
Que açoitar, Doroteu, em outra parte
Só pertence aos senhores, quando punem
Os caseiros delitos dos escravos.
250 -- Pois todo este direito se pretere:
No pelourinho a escada já se assenta,
Já se ligam dos réus os pés e os braços,
Já se descem calções e se levantam
Das imundas camisas rotas fraldas,
255 -- Já pegam dois verdugos nos zorragues,
Já descarregam golpes desumanos,
Já soam os gemidos e respingam
Miúdas gotas de pisado sangue.
Uns gritam que são livres, outros clamam
260 -- Que as sábias leis do rei os julgam brancos.
Este diz que não tem algum delito
Que tal rigor mereça, aquele pede
Do justo acusador, ao céu, vingança.
Não afrouxam os braços os verdugos,
265 -- Mas, antes, com tais queixas, se duplica
A raiva nos tiranos, qual o fogo
Que aos assopros dos ventos ergue a chama.
Às vezes, Doroteu, se perde a conta
Dos cem açoites, que no meio estava,
270 -- Mas outra nova conta se começa.
Os pobres miseráveis já nem gritam:
Cansados de gritar, apenas soltam
Alguns fracos suspiros, que enternecem.
Que é isso, Doroteu, tu já retiras
275 -- Os olhos do papel? Tu já desmaias?
Já sentes as moções, que alheios males
Costumam infundir nas almas ternas?
Pois és, prezado amigo, muito fraco,
Aprende a ter o valor do nosso chefe,
280 -- Que à janela se pôs e a tudo assiste
Sem voltar o semblante para a ilharga.
E pode ser, amigo, que não tenha
Esforço, para ver correr o sangue,
Que em defesa do trono se derrama.
285 -- Aos pobres açoitados manda o chefe
Que, presos nas correntes dos forçados,
Vão juntos trabalhar. Então se entregam
Ao famoso tenente, que os governa
Como sábio inspetor das grandes obras.
290 -- Aqui, prezado amigo, principiam
Os seus duros trabalhos. Eu quisera
Contar-te o que eles sofrem, nesta carta,
Mas tu, prezado amigo, tens o peito,
Dos males que já leste, magoado,
295 -- Por isto é justo que suspenda a história
Enquanto o tempo não te cura a chaga.




