20 junho, 2012

3ª CARTA CHILENA


Em que se contam as injustiças e violências que Fanfarrão executou por causa de uma cadeia, a que deu princípio.

Que triste, Doroteu, se pôs a tarde!
Assopra o vento sul, e densa nuvem
Os horizontes cobre; a grossa chuva,
Caindo das biqueiras dos telhados,
5 -- Forma regatos, que os portais inundam.
Rompem os ares colubrinas fachas
De fogo devorante, e ao longe soa
De compridos trovões o baixo estrondo.
Agora, Doroteu, ninguém passeia,
10 -- Todos em casa estão, e todos buscam
Divertir a tristeza, que nos peitos
Infunde a tarde, mais que a noite feia.
O velho Altimidonte, certamente,
Tem postas nos narizes as cangalhas
15 – E, revolvendo os grandes, gordos livros.
C'os dedos inda sujos de tabaco,
Ajunta ao mau processo muitas folhas
De vãs autoridades carregadas.
O nosso bom Dirceu, talvez que esteja,
20 -- Com os pés escondidos no capacho,
Metido no capote, a ler gostoso
O seu Vergílio, o seu Camões e Tasso.
O terno Floridoro a estas horas
No mole espreguiceiro se reclina
25 -- A ver brincar, alegres, os filhinhos:
Um já montado na comprida cana
E outro pendurado no pescoço
Da mãe formosa, que risonho abraça.
O gordo Josefino está deitado,
30 -- Nada lhe importa, nem do mundo sabe: 
Ao som do vento, dos trõvoes e chuva,
Como em noite tranqüila, dorme e ronca;
O nosso Damião, enfim, abana
Ao lento fogo com que, sábio, tira
35 -- Os úteis sais da terra, e o teu Critilo,
Que não encontra, aqui, com quem murmure,
Quando só murmurar lhe pede o gênio,
Pega na pena e desta sorte voa,
De cá, tão longe, a murmurar contigo.
40 -- Já disse, Doroteu, que o nosso chefe,
Apenas principia a governar-nos,
Nos pertende mostrar que tem um peito
Muito mais terno e brando do que pedem
Os severos ofícios do seu cargo.
45 -- Agora, cuidarás, prezado amigo,
Que as chaves das cadeias já não abrem,
Comidas da ferrugem? Que as algemas,
Como trastes inúteis, se furtaram?
Que o torpe executor das graves penas
50 -- Liberdade ganhou? Que já não temos
Descalços guardiães, que à fonte levem,
Metidos nas correntes, os forçados?
Assim, prezado amigo, assim devia
Em Chile acontecer, se o nosso chefe
55 -- Tivesse, em governar, algum sistema.
Mas, meu bom Doroteu, os homens néscios
Às folhas dos olmeiros se comparam:
São como o leve fumo, que se move
Para partes diversas, mal os ventos
60 -- Começam a apontar, de partes várias.
Ora, pois, doce amigo, atende o como
No seu contrário vício, degenera
A falsa compaixão do nosso chefe,
Qual o sereno mar, que, num instante,
65 -- As ondas sobre as ondas encapela.

Pertende, Doroteu, o nosso chefe
Erguer uma cadeia majestosa,
Que possa escurecer a velha fama
Da torre de Babel e mais dos grandes,
70 -- Custosos edifícios que fizeram,
Para sepulcros seus, os reis do Egito.
Talvez, prezado amigo, que imagine
Que neste monumento se conserve,
Eterna, a sua glória, bem que os povos
75 -- Ingratos não consagrem ricos bustos
Nem montadas estátuas ao seu nome.
Desiste, louco chefe, dessa empresa:
Um soberbo edifício levantado
Sobre ossos de inocentes, construído
80 -- Com lágrimas dos pobres, nunca serve
De glória ao seu autor, mas, sim, de opróbrio.

Desenha o nosso chefe, sobre a banca,
Desta forte cadeia o grande risco,
À proporção do gênio e não das forças
85 -- Da terra decadente, aonde habita.
Ora, pois, doce amigo, vou pintar-te
Ao menos o formoso frontispício.
Verás se pede máquina tamanha
Humilde povoado, aonde os grandes
90 -- Moram em casas de madeira a pique.

Em cima de espaçosa escadaria
Se forma do edifício a nobre entrada
Por dois soberbos arcos dividida;
Por fora destes arcos se levantam
95 -- Três jônicas colunas, que se firmam
Sobre quadradas bases e se adornam
De lindos capitéis, aonde assenta
Uma formosa, regular varanda;
Seus balaústres são das alvas pedras
100 -- Que brandos ferros cortam sem trabalho.
Debaixo da cornija, ou projectura,
Estão as armas deste reino abertas
No liso centro de vistosa tarja.
Do meio desta frente sobe a torre
105 -- E pegam desta frente, para os lados, 
Vistosas galerias de janelas, 
A quem enfeitam as douradas grades. 

E sabes, Doroteu, quem edifica 
Esta grande cadeia? Não, não sabes.
110 -- Pois ouve, que eu to digo: um pobre chefe
Que na corte habitou em umas casas
Em que já nem se abriam as janelas.
E sabes para quem? Também não sabes.
Pois eu também to digo: para uns negros
115 -- Que vivem, quando muito, em vis cabanas,
Fugidos dos senhores, lá nos matos.
Eis aqui, Doroteu, ao que se pode
Muito bem aplicar aquela mofa
Que faz o nosso mestre, quando pinta
120 -- Um monstro meio peixe e meio dama.
Na sábia proporção é que consiste
A boa perfeição das nossas obras.
Não pede, Doroteu, a pobre aldeia
Os soberbos palácios, nem a corte
125 -- Pode, também, sofrer as toscas choças.
Para haver de suprir o nosso chefe
Das obras meditadas as despesas,
Consome do senado os rendimentos
E passa a maltratar ao triste povo
130 -- Com estas nunca usadas violências:
Quer cópia de forçados que trabalhem
Sem outro algum jornal mais que o sustento,
E manda a um bom cabo que lhe traga
A quantos quilombolas se apanharem
135 -- Em duras gargalheiras. Voa o cabo,
Agarra a um e outro, e num instante
Enche a cadeia de alentados negros.
Não se contenta o cabo com trazer-lhe
Os negros que têm culpas, prende e manda
140 -- Também, nas grandes levas, os escravos
Que não têm mais delitos que fugirem
Às fomes e aos castigos, que padecem
No poder de senhores desumanos.
Ao bando dos cativos se acrescentam
145 -- Muitos pretos já livres e outros homens
Da raça do país e da européia,
Que, diz ao grande chefe, são vadios
Que perturbam dos povos o sossego.

Não há, meu Doroteu, quem não se molde
150 -- Aos gestos e aos costumes dos maiores.
Brincando, os inocentes os imitam,
Se às tropas se exercitam, eles fingem
As hórridas batalhas. Se se fazem
Devotas procissões, também carregam
155 -- Aos ombros os andores e as charolas.
Os mesmos magistrados se revestem
Do gênio e das paixões de quem governa.
Se o rei é piedoso, são benignos
Os severos ministros, se é tirano,
160 -- Mostram os pios corações de feras.
Por isso, Doroteu, um chefe indigno
É muito e muito mau, porque êle pode
A virtude estragar de um vasto império.
Os nossos comandantes, que conhecem
165 -- A vontade do chefe, também querem
Imitar deste cabo o ardente zelo.
Enviam para as pedras os vadios
Que, na forma das ordens, mandar devem
Habitar em desterro novas terras.
170 -- Ora, pois, doce amigo, já que falo
Nos nossos comandantes, será justo
Que te dê destes bichos uma idéia.

A gente, Doroteu, que não se alista
Nas tropas regulares forma corpos
175 -- De bisonha ordenança. Não há terra
Sem ter um corpo destes. Os seus chefes
Ao capitão maior estão sujeitos,
E são os que se chamam comandantes,
Porque as partes comandam destes terços.
180 -- Estes famosos chefes, quase sempre
Da classe dos tendeiros são tirados.
Alguns, inda depois de grandes homens,
Se lhe faltam os negros, a quem deixam
O governo das vendas, não entendem
185 -- Que infamam as bengalas, quando pesam
A libra de toucinho e quando medem
O frasco de cachaça. Agora atende,
Verás que desta escória se levanta
De magistrados uma nova classe.

190 -- Aos ricos taverneiros, disfarçados
Em ar de comandantes, manda o chefe
Que tratem da polícia e que não deixem
Viver, nos seus distritos, as pessoas
Que forem revoltosas. Quer que façam
195 -- A todos os vadios uns sumários
E que, sem mais processos, os remetam
Para remotas partes, sem que destas
Jurídicas sentenças, se faculte
Algum recurso para mor alçada.

200 -- Já viste, Doroteu, um tal desmando?
As santas leis do reino não concedem
Ao magistrado régio que execute,
No crime o seu julgado, e o nosso chefe
Quer que dêem as sentenças sem apelo
205 -- Incultos comandantes, que nem sabem
Fazer um bom diário do que vendem!
Concedo, caro amigo, que estes homens
São uns grandes consultos, que meteram
Os corpos do direito nos seus cascos.
210 -- Ainda assim pergunto: e como pode
O chefe conceder-lhes esta alçada?
Ignora a lei do reino, que numera
Entre os direitos próprios dos augustos
A criação dos novos magistrados?
215 -- O grande Salomão lamenta o povo
Que sobre o trono tem um rei menino;
Eu lamento a conquista, a quem governa
Um chefe tão soberbo e tão estulto
Que, tendo já na testa brancas repas,
220 -- Não sabe ainda que nasceu vassalo.

Os néscios comandantes e o bom cabo,
Que fez o nosso herói geral meirinho,
Remetem, nas correntes, povo imenso.
Parece, Doroteu, que temos guerras;
225 -- Que, para recrutar as companhias,
De toda a parte vêm chorosas levas.
Aqui, prezado amigo, principia
Esta triste tragédia; sim, prepara,
Prepara o branco lenço, pois não podes
230 -- Ouvir o resto, sem banhar o rosto
Com grossos rios de salgado pranto.
Nas levas, Doroteu, não vêm somente
Os culpados vadios; vem aquele
Que a dívida pediu ao comandante;
235 -- Vem aquele que pôs impuros olhos
Na sua mocetona, e vem o pobre
Que não quis emprestar-lhe algum negrinho,
Para lhe ir trabalhar na roça e lavra.

Estes tristes, mal chegam, são julgados
240 -- Pelo benigno chefe a cem açoites.
Tu sabes, Doroteu, que as leis do reino
Só mandam que se açoitem com a sola
Aqueles agressores, que estiverem,
Nos crimes, quase iguais aos réus de morte.
245 -- Tu também não ignoras que os açoites
Só se dão, por desprezo, nas espáduas,
Que açoitar, Doroteu, em outra parte
Só pertence aos senhores, quando punem
Os caseiros delitos dos escravos.
250 -- Pois todo este direito se pretere:
No pelourinho a escada já se assenta,
Já se ligam dos réus os pés e os braços,
Já se descem calções e se levantam
Das imundas camisas rotas fraldas,
255 -- Já pegam dois verdugos nos zorragues,
Já descarregam golpes desumanos,
Já soam os gemidos e respingam
Miúdas gotas de pisado sangue.
Uns gritam que são livres, outros clamam
260 -- Que as sábias leis do rei os julgam brancos.
Este diz que não tem algum delito
Que tal rigor mereça, aquele pede
Do justo acusador, ao céu, vingança.
Não afrouxam os braços os verdugos,
265 -- Mas, antes, com tais queixas, se duplica
A raiva nos tiranos, qual o fogo
Que aos assopros dos ventos ergue a chama.
Às vezes, Doroteu, se perde a conta
Dos cem açoites, que no meio estava,
270 -- Mas outra nova conta se começa.
Os pobres miseráveis já nem gritam:
Cansados de gritar, apenas soltam
Alguns fracos suspiros, que enternecem.
Que é isso, Doroteu, tu já retiras
275 -- Os olhos do papel? Tu já desmaias?
Já sentes as moções, que alheios males
Costumam infundir nas almas ternas?
Pois és, prezado amigo, muito fraco,
Aprende a ter o valor do nosso chefe,
280 -- Que à janela se pôs e a tudo assiste
Sem voltar o semblante para a ilharga.
E pode ser, amigo, que não tenha
Esforço, para ver correr o sangue,
Que em defesa do trono se derrama.

285 -- Aos pobres açoitados manda o chefe
Que, presos nas correntes dos forçados,
Vão juntos trabalhar. Então se entregam
Ao famoso tenente, que os governa
Como sábio inspetor das grandes obras.
290 -- Aqui, prezado amigo, principiam
Os seus duros trabalhos. Eu quisera
Contar-te o que eles sofrem, nesta carta,
Mas tu, prezado amigo, tens o peito,
Dos males que já leste, magoado,
295 -- Por isto é justo que suspenda a história
Enquanto o tempo não te cura a chaga.

14 junho, 2012

ACADEMIA DO AMOR


Pratique o amor matinal.
Faça amor ao meio-dia,
na academia emocional.
Faça amor três vezes.
Ao anoitecer, após refeição sadia,
exercite amor até o raiar do dia.

13 junho, 2012

LIBERDADE


RECAÍDA


CÂNCER DE PELE


ACELEROU


Ando tão perdido em meus pensamentos
Longe já se vão os meus dias de paz
Hoje com a lua clara brilhando
Vejo que o que sinto por ti é mais
Quando te vi, aquilo era quase o amor
Você me acelerou, acelerou, me deixou desigual
Chegou pra mim, me deu um daqueles sinais
Depois desacelerou e eu fiquei muito mais
Sempre esperarei por ti, chegue quando
Sonho em teus braços dormir, descansar
Venha e a vida pra você será boa
Cedo que é pra gente se amar a mais
Muito mais perdido, quase um cara vencido
À mercê de amigo ou coisa que o valha
Você me enlouquece, você bem que merece
'inda me aparece de minissaia
Sério, o que eu vou fazer, eu te amo
Nada do que é você em mim se desfaz
Mesmo sem saber o teu sobrenome
Creio que te amar é pra sempre mais

2ª CARTA CHINELA


CARTA 2ª
Em que se mostra a piedade que Fanfarrão fingiu no princípio do seu governo, para chamar a si todos os negócios.
As brilhantes estrelas já caíam
E a vez terceira os galos já cantavam,
Quando, prezado amigo, punha o selo 
Na volumosa carta, em que te conto
5 -- Do nosso imortal chefe a grande entrada; 
E refletindo, então, ser quase dia,
A despir-me começo, com tal ânsia, 
Que entendo que inda estava o lacre quente 
Quando eu já, sobre os membros fatigados,
10 -- Cuidadoso, estendia a grosa manta.

Não cuides, Doroteu, que brandas penas
Me formam o colchão macio e fofo;
Não cuides que é de paina a minha fronha
E que tenho lençóis de fina holanda,
15 -- Com largas rendas sobre os crespos folhos;
Custosos pavilhões, dourados leitos
E colchas matizadas, não se encontram
Na casa mal provida de um poeta,
Aonde há dias que o rapaz que serve
20 -- Nem na suja cozinha acende o fogo.
Mas, nesta mesma cama, tosca e dura,
Descanso mais contente, do que dorme
Aquele, que só põe o seu cuidado
Em deixar a seus filhos o tesouro
25 -- Que ajunta, Doroteu, com mão avara,
Furtando ao rico e não pagando ao pobre.
Aqui... mas onde vou, prezado amigo?
Deixemos episódios que não servem,
E vamos prosseguindo a nossa história.

30 -- Fui deitar-me ligeiro, como disse,
E mal estendo nos lençóis o corpo,
Dou um sopro na vela, os olhos fecho
E pelos dedos rezo a muitos santos,
Por ver se chega mais depressa o sono,
35 -- Conselho que me deram sábias velhas.
Já, meu bom Doroteu, o sono vinha:
Umas vezes dormindo, ressonava,
Outras vezes, rezando, inda bulia
Com os devotos beiços, quando sinto
40 -- Passar um carro, que me abala o leito.
Assustado desperto, os olhos abro
E, conhecendo a causa que me acorda,
Um tanto impaciente o corpo viro,
Fecho os olhos de novo e cruzo os braços
45 -- Para ver se outra vez me torna o sono.
Segunda vez o sono já tornava,
Quando o estrondo percebo de outro carro;
Outra vez, Doroteu, o corpo volto,
Outra vez me agasalho, mas que importa?
50 -- Já soam dos soldados grossos berros,
Já tinem as cadeias dos forçados,
Já chiam os guindastes, já me atroam
Os golpes dos machados e martelos
E, ao pé de tanta bulha, já não posso
55 -- Mais esperança ter de algum sossego.

Salto fora da cama, acendo a vela,
À banca vou sentar-me exasperado,
E, por ver se entretenho as longas horas,
Aparo a minha pena, o papel dobro
60 -- E com mão, que ainda treme de cansada,
Não sei, prezado amigo, o que te escrevo.
Só sei que o que te escrevo são verdades
E que vêm muito bem ao nosso caso.

Apenas, Doroteu, o nosso chefe
65 -- As rédeas manejou, do seu governo,
Fingir-nos intentou que tinha uma alma
Amante da virtude. Assim foi Nero.
Governou aos romanos pelas regras
Da formosa justiça, porém logo
70 -- Trocou o cetro de ouro em mão de ferro. 
Manda, pois, aos ministros lhe dêem listas
De quantos presos as cadeias guardam,
Faz a muitos soltar e aos mais alenta
De vivas, bem fundadas esperanças.
75 -- Estranha ao subalterno, que se arroga
O poder castigar ao delinqüente
Com troncos e galés; enfim ordena
Que aos presos, que em três dias não tiverem
Assentos declarados, se abram logo
80 -- Em nome dele, chefe, os seus assentos.

Aquele, Doroteu, que não é santo, 
Mas quer fingir-se santo aos outros homens, 
Pratica muito mais, do que pratica 
Quem segue os sãos caminhos da verdade.
85 -- Mal se põe nas igrejas, de joelhos, 
Abre os braços em cruz, a terra beija, 
Entorta o seu pescoço, fecha os olhos, 
Faz que chora, suspira, fere o peito, 
E executa outras muitas macaquices
90 -- Estando em parte onde o mundo as veja. 
Assim o nosso chefe, que procura 
Mostrar-se compassivo, não descansa 
Com estas poucas obras: passa a dar-nos
Da sua compaixão maiores provas.

95 -- Tu sabes, Doroteu, qual seja o crime 
Dos soldados que furtam aos soldados, 
E sabes muito bem que pena incorram 
Aqueles que viciam ouro e prata. 
Agora, Doroteu, atende o como
100 -- Castiga o nosso chefe em um sujeito
Estes graves delitos, que reputa 
Ainda menos do que leves faltas.

Apanha um militar aos camaradas 
Do soldo uma porção. Astuto e destro,
105 -- Para não se sentir o grave furto, 
Mistura nos embrulhos, que lhes deixa, 
Igual quantia de metal diverso.
Faz-se queixa ao bom chefe deste insulto, 
Sim, faz-se ao chefe queixa, mas debalde,
110 -- Que este Hércules não cinge a grossa pele, 
Nem traz na mão robusta a forte clava,
Para guerra fazer ao torpe Caco.

Já leste, Doroteu, a D. Quixote? 
Pois eis aqui, amigo, o seu retrato;
115 -- Mas diverso nos fins, que o doido Mancha 
Forceja por vencer os maus gigantes 
Que ao mundo são molestos, e este chefe 
Forceja por suster, no seu distrito, 
Aqueles que se mostram mais velhacos.
120 -- Não pune, doce amigo, como deve, 
Das sacrossantas leis a grave ofensa; 
Antes, benigno, manda ao bom Matúsio 
Que, do seu ouro próprio se ressarça 
Aos aflitos roubados toda a perda.
125 -- Já viste, Doroteu, igual desordem?
O dinheiro de um chefe, que a lei guarda,
Acode aos tristes órfãos e às viúvas;
Acode aos miseráveis, que padecem
Em duras, rotas camas, e socorre,
130 -- Para que honradas sejam, as donzelas,
Porém não paga furtos, por que fiquem
Impunes os culpados, que se devem,
Para exemplo, punir com mão severa.

Envia, Doroteu, vizinho chefe
135 -- Ao nosso grande chefe outro soldado
Por vários crimes convencido e preso.
Lança-se o tal soldado, de joelhos
Aos pés do seu herói, suspira e treme,
Não nega que ferira e que matara,
140 -- Mas pede que lhe valha a mão piedosa 
Que tudo pode, que ele aperta e beija.
Pergunta-lhe o bom chefe se os seus crimes
Divulgados estão, e o camarada,
Com semblante já leve, lhe responde
145- Que suas graves culpas foram feitas
Em sítios mui distantes desta praça.
Então, então o chefe, compassivo,
Manda tirar os ferros dos seus braços, 
Dá-lhe um salvo-conduto, com que possa,
150 -- Contanto que na terra não se saiba, 
fazer impunemente insultos novos.

Caminha, Doroteu, à força um negro,
Conforme as leis do reino bem julgado.
Tu sabes, Doroteu, que o próprio Augusto
155 -- Estas fatais sentenças não revoga
Sem um justo motivo, em que se firme
Do seu perdão a causa. Também sabes
Que estas mesmas mercês se não concedem
Senão por um decreto, em que se expende
160 -- Que o sábio rei usou, por motu-próprio,
Do mais alto poder que vem do cetro.
Agora, Doroteu, atende e pasma:
Por um simples despacho, manda o chefe
Que o triste padecente se recolha.
165 -- Assenta: vale tanto, lá na corte,
Um grande — El-Rei — impresso, quanto vale 
Em Chile, um — Como pede — e o seu garrancho.

Aonde, louco chefe, aonde corres
Sem tino e sem conselho? Quem te inspira
170 -- Que remitir as penas é virtude?
E, ainda a ser virtude, quem te disse
Que não é das virtudes, que só pode,
Benigna, exercitar a mão augusta?
Os chefes, bem que chefes, são vassalos
175 -- E os vassalos não têm poder supremo.
O mesmo grande Jove, que modera
O mar, a terra e o céu, não pode tudo,
Que ao justo só se estende o seu império.

O povo, Doroteu, é como as moscas
180 -- Que correm ao lugar, aonde sentem
O derramado mel; é semelhante
Aos corvos e aos abutres, que se ajuntam
Nos ermos, onde fede a carne podre.
À vista, pois, dos fatos, que executa
185 -- O nosso grande chefe, decisivos
Da piedade que finge, a louca gente
De toda a parte corre a ver se encontra
Algum pequeno alívio à sombra dele.
Não viste, Doroteu, quando arrebenta
190 -- Ao pé de alguma ermida a fonte santa, 
Que a fama logo corre e todo o povo 
Concebe que ela cura as graves queixas? 
Pois desta sorte entende o néscio vulgo 
Que o nosso general lugar-tenente,
195 -- Em todos os delitos e demandas
Pode de absolvição lavrar sentenças.
Não há livre, não há, não há cativo
Que ao nosso Santiago não concorra.
Todos buscam ao chefe e todos querem,
200 -- Para serem bem vistos, revestir-se
Do triste privilégio de mendigos.
Um as botas descalça, tira as meias
E põe no duro chão os pés mimosos;
Outro despe a casaca mais a veste
205 -- E de vários molambos mal se cobre; 
Este deixa crescer a ruça barba, 
Com palhas de alhos se defuma aquele; 
Qual as pernas emplastras e move o corpo 
Metendo nos sovacos as muletas;
210 -- Qual ao torto pescoço dependura,
Despido, o braço que só cobre o lenço;
Uns, com bordão, apalpam o caminho,
Outros, um grande bando lhe apresentam
De sujas moças, a quem chamam filhas.
215 -- Já foste, Doroteu, a um convento
De padres franciscanos, quando chegam
As horas de jantar? Passaste, acaso,
Por sítio em que morreu mineiro rico,
Quando da casa sai pomposo enterro?
220 -- Pois eis aqui, amigo, bem pintada 
A porta, mais a rua deste chefe 
Nos dias de audiência. Oh! quem pudera 
Nestes dias meter-se um breve instante, 
A ver o que ali vai na grande sala!
225 -- Escusavas de ler os entremezes
Em que os sábios poetas introduzem,
Por interlocutores, chefes asnos.
Um pede, Doroteu, que lhe dispense
Casar com uma irmã da sua amásia;
230 -- Pede outro que lhe queime o mau processo,
Onde está criminoso por ter feito
Cumprir exatamente um seu despacho;
Diz este que os herdeiros não lhe entregam
Os bens, que lhe deixou, em testamento,
235 -- Um filho de Noé; aquele ralha
Contra os mortos,juízes, que lhe deram,
Por empenhos e peitas, a sentença,
Em que toda a fazenda lhe tiraram:
Um quer que o devedor lhe pague logo;
240 -- Outro, para pagar, pertende espera;
Todos, enfim, concluem que não podem 
Demandas conservar, por serem pobres 
E grandes as despesas, que se fazem 
Nas casas dos letrados e cartórios.
245 -- Então o grande chefe, sem demora,
Decide os casos todos que lhe ocorrem,
Ou sejam de moral, ou de direito,
Ou pertençam, também, à medicina,
Sem botar (que ainda é mais) abaixo um livro
250 -- Da sua sempre virgem livraria.
Lá vai uma sentença revogada
Que já pudera ter cabelos brancos;
Lá se manda que entreguem os ausentes
Os bens ao sucessor, que não lhes mostra
255 -- Sentença que lhe julgue a grossa herança. 
A muitos, de palavra, se decreta 
Que em pedir os seus bens não mais prossigam; 
A outros se concedem breves horas 
Para pagarem somas que não devem.
260 -- Ah! tu, meu Sancho Pança, tu que foste 
Da Baratária o chefe, não lavraste 
Nem uma só sentença tão discreta! 
E que queres, amigo, que suceda? 
Esperavas, acaso, um bom governo
265 -- Do nosso Fanfarrão? Tu não o viste 
Em trajes de casquilho, nessa corte? 
E pode, meu amigo, de um peralta 
Formar-se, de repente, um homem sério? 
Carece, Doroteu, qualquer ministro
270 -- Apertados estudos, mil exames, 
E pode ser o chefe onipotente 
Quem não sabe escrever uma só regra
Onde, ao menos, se encontre um nome certo? 
Ungiu-se, para rei do povo eleito,
275 -- A Saul, o mais santo que Deus via. 
Prevaricou Saul, prevaricaram, 
No governo dos povos, outros justos. 
E há de bem governar remotas terras 
Aquele que não deu, em toda vida
280 -- Um exemplo de amor à sã virtude? 
As letras, a justiça, a temperança 
Não são, não são morgados que fizesse 
A sábia natureza, para andarem, 
Por sucessão nos filhos dos fidalgos.

285 -- Do cavalo andaluz, é, sim, provável 
Nascer, também, um potro de esperança, 
Que tenha frente aberta, largos peitos, 
Que tenha alegres olhos e compridos, 
Que seja, enfim, de mãos e pés calçado;
290 -- Porém de um bom ginete também pode
Um catralvo nascer, nascer um zarco.
Aquele mesmo potro, que tem todos
Os formosos sinais que aponta o Rego,
Carece, Doroteu, correr em roda
295 -- Do grande picadeiro muitos meses,
Para um e outro lado, necessita
Que o destro picador lhe ponha a sela
E que, montando nele, pouco a pouco,
O faça obedecer ao leve toque
300 -- Do duro cabeção, da branda rédea. 
Dos mesmos, Doroteu... porém já toca,
Ao almoço a garrida da cadeia:
Vou ver se dormir posso, enquanto duram 
Estes breves instantes de sossego, 
305 -- Que, sem barriga farta e sem descanso, 
Não se pode escrever tão longa história.