30 agosto, 2012

12ª CARTA CHILENA


Aquele que se jacta de fidalgo
Não cessa de contar progenitores
Da raça dos suevos, mais dos godos;
O valente soldado gasta o dia
5 -- Em falar das batalhas, e nos mostra
Das feridas, que preza, cheio o corpo;
O louco namorado não descansa
Enquanto tem quem ouça as aventuras,
Que fez com as madamas, mais senhoras,
10 -- Benzendo-se mil vezes, quando chega
Aos lances apertados de ser visto
Dos maridos, dos pais e dos parentes,
Em que, só por milagre, não foi morto.
Assim, assim, também, o teu Critilo
15 -- Não cansa de escrever-te, enquanto encontra
Do tolo Fanfarrão, do indigno chefe,
Estranhas bandalhices, que te conte.
Ah! sofre, amigo, que te gaste o tempo,
Pois conter-se não pode, bem que queira,
20 -- Que a força da paixão assopra a chama,
A chama ativa do picante gênio.

Já sabes, Doroteu, aonde chega
Do nosso Fanfarrão a bizarria,
Em premiar serviços de uma dama.
25 -- Agora, nesta carta, vou mostrar-te
Até aonde chegam as grandezas
Que fez com os marotos, por que tenhas,
Do seu fidalgo gênio noção clara.

Qual negra tempestade, que carrega
30 -- As nuvens de cupins e de formigas,
Que criam, com as chuvas, longas asas,
Assim o nosso chefe traz consigo,
Arribação infame de bandalhos,
Que geram também asas, com a muita,
35 -- Nociva audácia que lhes dá seu amo.
Na corja dos marotos aparece
Um magriço mulato, a quem o chefe,
Por ocultas razões estima e preza.
Talvez que, noutro tempo, lhe levasse
40 -- Os miúdos papéis às suas damas.
Ocupação distinta, que já teve
Um famoso Mercúrio, que comia
Sentado à mesa dos mais altos deuses.
Deseja o nosso chefe que este lucre
45 -- Quatrocentas oitavas, pelo menos,
E, para que não saiam de seu bolso,
Descobre esta feliz e nova idéia:
Dispõe dos bens alheios como próprios.
No público teatro de Lupésio
50 -- Ordena, Doroteu, se represente
Uma vista comédia, por que fiquem,
Para o velho mulato, os lucros dela.
Ordena, ainda mais, que o seu Robério
Os boletos reparta pelas damas,
55 -- Pelos contratadores opulentos
E por quantos casquilhos os quiserem
Pagar, ao menos, por dobrado preço.
Robério assim o faz; supõe, coitado,
Que prometeu pedir alguma missa.
60 -- E, junto c’o mulato, vai entrando
Em uma e outra casa, aonde deixa
Ou selado papel, para a platéia,
Ou, com tábua pendente, a velha chave.
Ah! nota, Doroteu, que ação tão feia!
65 -- Aquele bruto chefe, que não paga
Às pessoas mais nobres o cortejo
Sequer por um criado, agora manda
Que o seu próprio Robério, o seu bom aio,
Ande de porta em porta, qual mendigo,
70 -- Pedindo para um bode a benta esmola!
Então, amigo, a quem? a quem? aos mesmos
Que tem desfeiteado muitas vezes,
E às pobres, que é mais, às pobres moças,
Que hão de ganhar, à custa do seu corpo,
75 -- Com que possam pagar deste convite
Um tão avantajado, indigno preço.
Maldita sejas tu, pouca vergonha,
Que tanto influxo tens sobre este leso!

Chegou-se, Doroteu, a noite alegre
80 -- Destinada à função, e o vil Robério
Dá nova prova de fervor e zelo:
Vai-se pôr, com o traste do mulato,
Na porta da platéia, e, quando acaba
A primeira jornada, também corre
85 -- Os cheios camarotes: fina idéia!
Para ver se os tolinhos assim largam,
Na copa do chapéu, que a esmola apanha,
Embrulhos de mais peso! Ah! doce amigo,
Quem bandalho nasceu, ainda que suba
90 -- Ao posto de major, morreu bandalho,
Que o tronco, se dá fruto azedo, ou doce,
Procede da semente e qualidade
Da negra terra, em que foi gerado.

Servia-se este chefe de um lacaio,
95 -- E, por não lhe pagar salário certo,
Deu neste ardil também: quando ia às festas
Lhe dava o seu brandão, e as mais pessoas,
Que estavam na tribuna, por obséquio,
Lhe davam as compridas, grossas velas.
100 -- Se dava algum despacho, de que vinha
Proveito à parte rica, lho entregava,
Por que fosse ganhar o grande prêmio
Com que os néscios, servidos, o brindavam.
Nas vésperas, amigo, da partida,
105 -- Tratou de lhe fazer maior a safra:
Passou atestações a todo mundo
E, sem saber se o mundo lhas queria,
Mandou ao mesmo servo as entregasse
E os prêmios do trabalho recolhesse!
110 -- Maldita sejas tu, pouca vergonha,
Que tanto influxo tens sobre este leso!

Havia, Doroteu... mas não gastemos
O tempo em referir mais bandalhices
Da mesma natureza; refiramos
115 -- Outras, que sejam de diversa classe.
Não quero, Doroteu, que o justo tédio,
Que infunde a semelhança, te duplique
O tédio que produz a minha frase.

Fizeram os devotos de uma imagem,
120 -- Da festa protetor, ao grande chefe.
Aceita o Fanfarrão do cargo a honra
E medita fazer um grão festejo.
Ordena aos cavalheiros, que vieram
Correr as argolinhas, em obséquio
125 -- Do ditoso consórcio dos infantes,
Que esperam, nesta terra, à sua custa,
E que, nos dias da função, repitam
Os feitos jogos, com o mesmo lustre.
Manda que o grande curro, que o Senado
130 -- Fez levantar na praia, permaneça,
E venham os boizinhos, que, por serem
Mais bravos do que os outros, se guardaram,
Mal rapavam o chão e mal corriam,
Atrás do mau capinha, no terreiro.
135 -- Eis aqui, eis aqui, amigo, o como
Se fazem coisas grandes, sem despesa.
Manda mais o bom chefe que se aluguem
Os palanques a quatro oitavas d’ouro,
Para que se comprasse um patrimônio
140 -- À sacrossanta imagem, deste lucro.
Que sábias intenções, que fins tão santos!
Celebram-se os festins e não escapa
Um camarote só, que não se alugue;
Mas deste rendimento não se sabe,
145 -- Que a compra se meteu, de todo, à bulha.

Não penses, Doroteu, que o nosso chefe
Comeu este dinheiro. Longe, longe
De nós este tão baixo pensamento.
Indo já no caminho, o seu Matúsio
150 -- Passou, sobre Marquésio, certa letra,
Para que se pagasse ao Santo Cristo.
Agora considera se este fato
Não mostra que ele zela a consciência.
Agora inquirirás se o tal Marquésio
155 -- Pôs na sacada letra o seu "aceito".
Não pôs, não pôs, amigo, porque disse
Que deste passador não tinha efeitos.
Porém o bom Matúsio, mais seu amo,
Levam as consciências descansadas,
160 -- Pois não devem supor, pelo costume,
Que a letra não pagasse o mau rendeiro.
Maldita sejas tu, pouca vergonha,
Que tanto influxo tens sobre este leso!

Roubou um seu criado a certa escrava
165 -- E dentro lha meteu do seu palácio.
Conheceu o senhor quem fez o furto,
E foi pedir ao chefe que mandasse
Que o terno roubador restituísse
A serva, com os lucros, pois cedia
170 -- De toda a mais ação, que a lei lhe dava.
Que entendes, Doroteu, que obrou o chefe?
Que fez um sério exame sobre o caso?
Que, conhecendo ser a queixa justa,
Meteu, em duros ferros, ao criado?
175 -- Que não lhe perdoou, enquanto o mesmo
Ofendido queixoso não lhe veio
Suplicar o perdão da culpa grave?
Devias esperar que assim fizesse,
Mas, quando a razão pede certa coisa,
180 -- Ele, então, executa o seu contrário.
Não zela, Doroteu, a sã justiça,
Nem zela a honra própria, maculada
Na sua habitação, que o servo muda
Em torpe lupanário. Não, não zela;
185 --Antes, prezado amigo, austero, estranha
Ao mísero queixoso, que se atreva
A supor que os seus servos são capazes
De poderem obrar excessos destes.
Maldita sejas tu, pouca vergonha,
190 -- Que tanto influxo tens sobre este leso!

Passados alguns tempos, Ludovino
Encontrou, uma noite, a sua escrava
E à casa conduziu do bom Saônio,
Aonde, em hospedagem, se abrigava.
195 -- Aqui lhe perguntou a longa história
Da fugida que fez, e a triste serva,
Com ânimo sincero, assim lhe fala:
"Ribério me induziu a que fugisse,
Meteu-me no seu quarto, aonde estive
200 -- Fechada muitos dias. Alugou-me,
Depois, uma casinha; aqui me dava
Dos sobejos da mesa de seu amo,
Para eu alimentar a pobre vida.
Tive dele dois filhos; o demônio
205 --Enganou-me, senhor, cuidei..." E, nisto,
Queria mais dizer, porém, de pejo,
As lágrimas lhe estalam, e se cortam
As últimas palavras com suspiros.
Agora dirás tu, amigo honrado:
210 – "Agora, agora sim, agora é tempo,
Insolente Ribério, de nós vermos,
Para exemplo dos mais, o teu castigo.
Os soldados já marcham, já te prendem,
Já vens maniatado, já te metem
215 -- Na sórdida enxovia, já te encaixam
No pescoço a corrente, e vais marchando
Com rosto baixo, a ver Angola ou Índia."
Devagar, devagar com essas coisas:
Os servos de palácio são os duques
220 -- Do nosso Santiago, e não se prendem
Por essas, nem por outras ninharias.
Atrevidos soldados já se aprontam,
Mas não para prenderem a Ribério,
Sim para conduzirem, entre as armas,
225 -- Ao pobre Ludovino e à sua serva,
Que já buscando vão a sua casa,
Que dista desta terra muitas léguas.
É o mesmo Ribério quem caminha
A fazer, Doroteu, a diligência,
230 -- Cobrindo a testa da insolente esquadra.
Já viste, Doroteu, insultos destes?
Já viste que pertenda um homem sério 
Que, à força, um bom senhor de si demita
A escrava desonesta, porque possa
235 -- Ficar na mancebia? Já, já viste
Que se mande prender ao ultrajado
Pelo mesmo ladrão? Ah! caro amigo
Que destas insolências que te conto,
Apenas pode ver quem mora em Chile!
240 -- Maldita sejas tu, pouca vergonha,
Que tanto influxo tens sobre este leso!

Há, nesta grande terra, um homem sábio
E o único formado em medicina.
A este bom doutor estimam todos,
245 -- Por sua profissão, por seus talentos, 
Por seu afável modo e, mais que tudo,
Pelas muitas virtudes que respira.
Curava o nosso sábio a certo enfermo
E, vendo a vária febre e os mais sintomas,
250 -- Ordena que ele tome um copo d’água,
A que dá de Inglaterra o povo o nome.
Manda-lhe o boticário uma botelha,
Que já servido tinha; o sábio, atento
A que ela poderia ter perdido
255 -- A força natural, a não aprova,
E passa a receitar outro composto,
Que possa produzir o mesmo efeito.
Chorando, o boticário sobe ao chefe
E diz-lhe que o doutor a rejeitara,
260 -- Por ser seu inimigo e, desta sorte,
Tirar-lhe da botica o bom conceito.
Manda o chefe chamar aos boticários
E manda que examinem a garrafa;
Concordam os doutores que não tinha,
265 -- Ainda corrupção, talvez por verem
Que ainda conservava algum amargo.
Então, então o chefe, enfurecido,
Ordena ao ajudante que ali mesmo
Avise ao professor que ele tem ferros,
270 -- Cadeias e galés, com que reprima,
Se neles prosseguir, os seus excessos.
Maldita sejas tu, pouca vergonha,
Que tanto influxo tens sobre este leso!

Pensavas, Doroteu, que o nosso chefe
275 -- Passasse à insolência, que refiro,
De insultar, por amor de um vil mulato,
Um velho professor tão bem aceito,
Um velho professor, além de sábio,
Na terra singular no seu ofício?
280 --Não, meu prezado amigo, não pensavas;
Pois quero, Doroteu, dizer-te a causa:
Esta grave ameaça e grave insulto
Foi feita em tom de paga, porque o bode
Curava, cuidadoso, ao próprio chefe,
285 -- De mal oculto, que a modéstia cala.
Maldita sejas tu, pouca vergonha,
Que tanto influxo tens sobre este leso!

Ah! dize, Doroteu, por que motivo
O pai de Fanfarrão o não pôs antes
290 -- Na loja de algum hábil sapateiro,
C’os moços aprendizes deste ofício?
Agora dirás tu: "Nasceu fidalgo,
E as grandes personagens não se ocupam
Em baixos exercícios." Nada dizes.
295 -- Tonante, Doroteu, é pai dos deuses:
Nasceu-lhe o seu Vulcano e nasceu feio.
Mal o bom pai o viu, pregou-lhe um coice
Que o pôs do Olimpo fora, e o pobre moço
Foi abrir uma tenda de ferreiro.

MADRIGAL DE UM LOUCO - Da Costa e Silva

Madrigal de um Louco

                          L u a!
                        Camélia
                      Que flutua
                  No azul. Ofélia
                Serena e dolente,
              Fria, vagando pelas
             Alturas, serenamente,
     Por entre os lírios das estrelas;
   Santelmo aceso para a Saudade;
    Luz etérea, simbólica, perdida
Entre os astros de ouro pela imensidade;
  Esfinge da Ilusão no deserto da Vida!
  Lâmpada do Sonho, lívida, suspensa...
     Vaso espiritual dos meus cismares,
    Custódia argêntea da minha crença,
            Ó Rosa Mística dos ares!
        Unge o meu ser, na apoteose
               Da tua luz, e eu frua,
                Cismando, a pureza
                     Da luz e goze
                       Toda a tua
                        Tristeza,
                          L u a !


28 agosto, 2012

11ª CARTA CHILENA



Em que se contam as brejeirices de Fanfarrão.
No meio desta terra há uma ponte,
Em cujos dois extremos se levantam
De dois grossos rendeiros as moradas;
E, apenas, Doroteu, o sol declina
5 -- A descansar de Tétis no regaço,
Neste agradável sítio vão sentar-se
Os principais marotos e, com eles,
A brejeira família de palácio.

Aqui, meu bom amigo, aqui se passam
10 -- As horas em conversa deleitosa:
Um conta que o ministro, à meia noite,
Entrara no quintal de certa dama;
Diz outro que se expôs uma criança,
À porta de Florício, e já lhe assina
15 -- O pai e mais a mãe; aquele aumenta
A bulha que Dirceu com Lauro teve
Por ciúmes cruéis da sua amásia;
Este chama a Simplicio caloteiro
E mofa, ao mesmo tempo, de Frondélio,
20 -- Que o seu dinheiro guarda. Enfim, amigo,
Aqui, aqui de tudo se murmura.

Só se livra da língua venenosa
O que contrata em vendas de despachos
E quem se alegra ao ver que a sua moça
25 -- Ajunta, pela prenda, um par de oitavas:
Que os membros do congresso são prudentes
E não querem que alguns dos companheiros
Tomem esta conversa em ar de chasco.
Amigo Doroteu, ah! neste sítio
30 -- Eu não me dilatara um breve instante
Em dia de trovões, bem que estivesse
Plantado todo de loureiros machos!

Por este sítio, pois, passei há pouco
Cuidando que, por ser mui cedo ainda,
35 -- Não toparia a corja dos marotos.
Mas, apenas a vi, fiquei tremendo,
Qual fraco passageiro, quando avista,
Em deserto lugar, pintadas onças.
Contudo, Doroteu, criei esforço
40 -- E fui atravessando pelo meio,
Rezando sempre o credo e, por cautela,
Fazendo muitas cruzes sobre o peito.
Apenas me salvei daquele risco,
Um suspiro soltei, que encheu os ares,
45 -- E, voltando o semblante para o sítio,
Em que os tais mariolas se assentavam,
Meneando a cabeça um par de vezes
E soltando um sorriso, em ar de mofa,
Dentro do meu discurso, assim lhes falo:
50 – "Vocês, meus mariolas, meus tratantes,
Estão contando histórias das pessoas
De quem não são afetos, por que as levem
Aos ouvidos do chefe os seus lacaios;
Pois eu também já vou contar verdades,
55 -- Em que possam falar os homens sérios
Inda daqui a mais de um cento de anos."
Recolhi-me à choupana e, de repente,
Sem tirar a gravata do pescoço,
Entrei a pôr em limpo esta cartinha,
60 -- Que já, pelo caminho, vim compondo.

Entendo, Doroteu, que as nossas almas
Não são todas iguais; que o grande Jove
Fez umas de matéria muito pura,
Fez outras de matéria mais grosseira,
65 -- Por não perder as borras que ficaram.
Entendo, ainda mais, que o dispenseiro,
Quando lhe vão pedir algumas almas,
Vai dando aquelas que primeiro encontra.
Por isto, às vezes, nascem os mochilas
70 -- Com brios de fidalgos, outras vezes
Os nobres com espíritos humildes,
Só dignos de animarem vis lacaios.
O nosso Fanfarrão, prezado amigo,
Nos dá mui boa prova: não se nega
75 -- Que tenha ilustre sangue, mas não dizem
Com seu ilustre sangue as suas obras.

Apenas, Doroteu, a noite chega,
Ninguém andar já pode, sem cautela,
Nos sujos corredores de palácio.
80 -- Uns batem com os peitos noutros peitos;
Outros quebram as testas noutras testas;
Qual leva um encontrão, que o vira em roda;
E qual, por defender a cara, fura,
Com os dedos que estende, incautos olhos.
85 -- Aqui se quebra a porta e ninguém fala;
Ali range a couceira e soa a chave;
Este anda de mansinho, aquele corre;
Um grita que o pisaram, outro inquire
"Quem é?" a um vulto, que lhe não responde.
90 -- Não temas, Doroteu, que não é nada,
Não são ladrões que ofendam, são donzelas
Que buscam aos devotos, que costumam
Fazer, de quando em quando, a sua esmola.
Chegam-se, enfim, as horas, em que o sono
95 -- Estende, na cidade, as negras asas,
Em cima dos viventes espremendo
Viçosas dormideiras. Tudo fica
Em profundo silêncio; só a casa,
A casa aonde habita o grande chefe,
100 -- Parece, Doroteu, que vem abaixo.
Fingindo a moça que levanta a saia
E voando na ponta dos dedinhos,
Prega no machacaz, de quem mais gosta,
A lasciva embigada, abrindo os braços;
105 -- Então o machacaz, mexendo a bunda,
Pondo uma mão na testa, outra na ilharga,
Ou dando alguns estalos com os dedos,
Seguindo das violas o compasso,
Lhe diz —"eu pago, eu pago"— e, de repente,
110 -- Sobre a torpe michela atira o salto.
Ó dança venturosa! Tu entravas
Nas humildes choupanas, onde as negras,
Aonde as vis mulatas, apertando
Por baixo do bandulho a larga cinta,
115 -- Te honravam, c'os marotos e brejeiros,
Batendo sobre o chão o pé descalço.
Agora já consegues ter entrada
Nas casas mais honestas e palácios!
Ah! tu, famoso chefe, dás exemplo.
120 -- Tu já, tu já batucas, escondido
Debaixo dos teus tetos, com a moça
Que furtou ao senhor o teu Ribério!
Tu também já batucas sobre a sala
Da formosa comadre, quando o pede
125 -- A borracha função do santo Entrudo.
Ah! que isto, sendo pouco, e muito!
Que os exemplos dos chefes logo correm
E correm muito mais, quando fomentam
Aqueles vícios, a que os gênios puxam.

130 -- O tempo, Doroteu, voando foge,
E nunca os de palácio imaginaram
Que tão veloz fugia, como agora.
Acaba-se a função, e chega o dia;
vem abrir as janelas um criado,
135 -- E o chefe lhe pergunta que algazarra
Fizeram os mais servos toda a noite,
Que o não deixou dormir um breve instante.
O criado, que sabe que o bom chefe
Só quer que lhe confessem a verdade,
140 --O sucesso lhe conta, desta sorte:
"Fizemos esta noite um tal batuque!
Na ceia todos nós nos alegramos,
Entrou nele a mulher do teu lacaio;
Um só, senhor, não houve que, lascivo,
145 -- Com ela não brincasse; todos eles,
De bêbedos que estavam, não puderam
O intento conseguir; só eu, mais forte..."
Apenas isto diz o vil criado,
O chefe as costas vira e lhe responde,
150 -- Soltando um grande riso: "Fora, fracos!"

Já disse, Doroteu, que as mocetonas
Só entram em palácio quando estende
A noite, sobre a terra, a negra capa;
Que a formosa virtude da cautela
155 -- Até parece bem, naquele mesmo
A quem a profissão lhe não exige
Que viva recatado, como vivem
As moças, que inda querem ser donzelas.
Agora, Doroteu, julgar já podes
160 -- Que saem de palácio muito cedo.
Assim é, Doroteu; as donzelinhas
Pela porta travessa vão saindo,
Mal tocam as garridas à primeira.
Mas a bela Rosinha fica e dorme,
165 -- Nos braços de Matúsio, a madrugada;
Só sai de dia claro, e o grande chefe
Lhe atira uma pedrinha da janela,
Só para que lhe dê um ar de graça!
Que grande estimação, Rosica bela!
170 -- Aqui se mostra bem, que as outras moças
Não trazem, como trazes, lucro à casa.
Não há, prezado amigo, quem não queira
Mostrar-se liberal com sua dama.
Para dar-lhe o vestido, mais a capa,
175 -- O manto, a saia, a meia, a fita, o pente.
Tira o pobre de si e, destro, furta
O peralta rapaz ao pai jarreta.
Eu mesmo, Doroteu, que fui dos santos
Que em Salamanca andaram, umas vezes
180 -- Doenças afetava, outras fingia
Necessitar de livros, ou de um traste,
Para mandar de mimo a certo lente.
Maldita sejas tu, harpia Olaia,
Que, enquanto não abria a minha bolsa,
185 -- Não mostravas, também, alegre, os dentes!
Esta paixão, amigo, que nos vence,
Nos próprios animais também se observa:
Esgravatam os galos sobre a terra
E, mal topam o grão ou a migalha,
190 -- Contentes cacarejam, por que a moça
Se vá utilizar do seu trabalho.
O nosso ilustre chefe, que se julga
De mui diversa massa do que somos,
Neste ponto, também, também conhece
195 -- Que está sujeito à miséria d’homem.

Nas obras, doce amigo, da cadeia,
Trabalham jornaleiros por salário.
Aqueles que carregam cal e pedra
Só ganham, por semana, meia oitava;
200 -- Aqueles que trabalham de canteiro
Ao menos ganham, cada dia, um quarto.
Tem, pois, certa mocinha quatro negros
Que apenas são serventes, mas o chefe
Ordena que, na féria, se lhes pague
205 -- A quarto os seus jornais, e creio, amigo,
Que ainda não consente se descontem
Os muitos dias que nas obras faltam.

As casas onde mora esta madama
Ainda não estavam acabadas;
210 -- Agora já de longe a cal alveja,
Quem entra dentro delas já recreia
Os olhos nas pinturas das paredes
E teto apainelado, a quem, um dia,
Supria, Doroteu, a grossa esteira.
215 -- Não quis o nosso herói chamasse a moça,
Para mestre das obras, um pedreiro,
Entregou o conserto ao grão-tenente,
Que o fez baratinho, c’o massame
Que pertencia às obras da cadeia.

220 -- Entende Fanfarrão que não devia
Deixar ao desamparo a sua dama;
Que a lei da Igreja pede que amparemos
As que, por nossa culpa, se perderam,
E a lei da fidalguia, que professa
225 -- O nosso chefe, manda que ele ampare
As mesmas, que na fama já têm nota,
Contanto que isto seja à custa alheia.
Chama, pois, o bom chefe a um peralta,
Que era cabo de esquadra, e lhe comete
230 -- A glória de casar com uma dama
Que, se não fez descer dos céus à terra
Ao Supremo Tonante, fez, contudo,
Humanizar um chefe, que descende
Da mais distinta, mais soberba raça.
235 -- Que súbita alegria banha o rosto
Deste inocente cabo! Nos seus olhos
As lágrimas rebentam, e os seus beiços
Formar não podem uma só palavra.
A dita, Doroteu, é muito grande.
240 -- Que fortuna não é casar um pobre
Com a rica viúva de um fidalgo?
Chamar ao fidalguinho, que ele deixa,
Ou enteado ou filho? Aparentar-se
Com todos os magnates desta terra
245 -- Em grau tão conhecido e tão chegado?
Esta grande ventura, doce amigo,
Para todos não é. O negro demo
A guarda para prêmio dos serviços
Dos chefes principais dos seus bandalhos.

250 -- Mas ah! prezado amigo, que o bom chefe
Já manda aparelhar as magras bestas,
Que têm de conduzir-lhe o pobre fato
Que trouxe lá da corte, e se o casquilho
Não chega a receber a cara esposa
255 -- Primeiro que ele, no governo, morra,
Bem pode ser, amigo, se arrependa
E que, depois de ter cingido a banda
E empunhado o bastão, lhe pregue o mono.
Faltaram às promessas outros homens,
260 -- Que, de honrados, nos deram muitas provas.
Como faltar não pode ao seu ajuste
Um fraco coração, uma alma indigna
Que, por tão baixo preço, a honra vende?
Cautela e mais cautela; sim, o chefe
265 -- Não saberá mandar armadas tropas,
Nem saberá reger as cultas gentes,
Mas, para o não lograrem, sabe, astuto,
Dar todas as cadimas providências.
Escreve ao velho bispo e lhe suplica
270 -- Que em todos os três banhos o dispense;
Não expende razão que justa seja;
Porém o velho bispo tem bom gênio
E em todos os proclamas o dispensa;
Que ele tem grandes letras e bem sabe
275 -- Que os cânones da igreja não pensaram
Da espécie singular de quando um chefe
Quer, à pressa, casar a sua amásia.
Ah! se ele estas desordens não fizera,
Não daria motivo a ser cantado
280 --Por sábia, oculta musa, em um poema!

Agora inquirirás, prezado amigo,
Se é este sábio bispo aquele mesmo,
Que o bruto Fanfarrão, em certo dia,
Meteu na sua sege, ao lado esquerdo?
285 -- É este, sim, senhor, o mesmo bispo,
A quem o nosso chefe desalmado,
Enquanto governou a nossa Chile,
Já dentro de palácio e já na rua,
Tratou como quem trata um vil podengo.
290 --De novo inquirirás: "Então um chefe,
Que trata dessa sorte ao seu prelado,
Atreve-se a pedir-lhe que lhe faça
Dispensa em uma lei, a benefício
Da sua torpe amásia?" Eu, doce amigo,
295 -- Ainda duvidara, se pedira
Me desse absolvição dos meus pecados,
Ao ver-me para dar a Deus minha alma.
O mesmo, Doroteu, também fizeras;
Mas tu, prezado amigo, não conheces
300 -- O sistema que tem tão vil canalha.
Uma mui grande parte destes chefes
Assenta em procurar seu interesse
Por todos os caminhos, e acredita
Que o brio e pundonor, que nós prezamos,
305 -- São umas vãs fantasmas, que só devem
Honrar de simples voz aqueles homens,
Que vêm de uma distinta e velha raça.
Para estes a nobreza está nos termos
Do sórdido monturo em que se deita
310 -- Quanta imundície têm as velhas casas.
Ditoso de quem vive, neste mundo,
No estado de ver rir os outros homens
Das suas vis ações, sem que lhe suba
Um vermelho sinal de pejo à cara!
315 -- Mas ah! meu doce amigo, quanto, quanto
Se enganam estes monstros, que a nobreza
É um vestido branco, aonde, logo,
Aos olhos aparece a leve mancha!

Já chega, Doroteu, o alegre dia.
320 -- O dia venturoso do noivado.
Entra no santo templo a linda esposa,
Coberta toda de umas novas graças.
Os seus louros cabelos não flutuam,
Levados pelo vento, a toda parte;
325 -- Em tranças se dividem e se prendem
No pente, a quem esconde um branco laço;
Nos cabelos da frente resplandecem
Das pedras de mais custo os fogos vários;
A sua testa iguala à pura neve
330 -- E são da cor da rosa as suas faces;
São pérolas mimosas os seus dentes,
As gengivas rubis, e os grossos beiços
Estão cobertos dos cheirosos cravos.
Talvez, talvez não fosse tão formosa
335 -- A mesma, que obrigou ao forte Aquiles
A que, terno, vestisse a mole saia.

Neste sagrado templo não se adora
A imagem do Himeneu; aqui os noivos,
Para prova da fé que, eterna, dura,
340 -- Não recebem na mão acesa tocha.
Ministro do Senhor é quem os prende,
Cobrindo as castas mãos, com que se enlaçam,
Co’a branca ponta da pendente estola.
Aqui lascivas graças, nus amores
345 -- Não cercam os consortes, nem meneiam,
Em torno dos altares e das piras,
Os vistosos festões de lindas flores.
Aqui, aqui só entram as virtudes,
A cândida modéstia, a inocência,
350 -- A santa honestidade e a vergonha.
São estas e não outras as que correm
A receber, à porta do edifício,
Os sinceros amantes; sim, são estas,
São estas e não outras, as que espalham,
355 -- Debaixo dos seus pés, cheirosas folhas
E as que fazem queimar, sobre os braseiros,
O incenso devoto e os mais aromas.
Recebem estes gênios aos dois noivos
E ao ministro do altar os apresentam.
360 -- Ah! formosa Marília, agora, agora
Se aumentam tuas graças, pois te aviva
A cor da linda face um novo pejo!
Com que custo não dás a mão nevada
Ao teu amado Adônis, que a recebe
365 -- Como quem lucra nela o seu tesouro!

Já não veste Jelônio a grossa farda
Com divisas de lã e, sobre a testa,
Não põe a barretina, que enfeita
Com armas e botões de grosso estanho.
370 -- Já não cinge as correias amarelas,
Nem carrega, na cinta, o peso enorme
Dos férreos copos da comprida espada.
Jelônio se mudou, Jelônio é outro.
Já brilham, nos canhões, os alamares
375 -- Das finas lentejoulas, e, nos ombros,
Já brilham as dragonas, enfeitadas
C'os grandes cachos das lustrosas flores.
Jelônio se mudou, Jelônio é outro.
A veste de cetim já resplandece
380 -- Orlada co’o galão da fina prata,
E, por cima da veste, já se enrola,
Na cintura, a vermelha e rica banda.
Jelônio se mudou, Jelônio é outro.
Como está belo! Como está casquilho!
385 -- Concerta do babado a fina renda,
Olha uma e outra vez os alamares,
Endireita a cucula, estende a perna;
Não consente um só fio sobre a farda;
Levanta o pescocinho, morde os beiços,
390 -- E o seu cabelo, com a mão, afaga.
Jelônio se namora de si mesmo,
Ainda, ainda mais que o terno Adônis,
Quando viu o seu rosto dentro d’água.
Jelônio se mudou, Jelônio é outro.
395 -- Então, os militares que o rodeiam,
Amado Doroteu, risonhos, mofam.
Um pisa com o pé nos pés vizinhos;
Puxa outro pelas pontas das fardetas
Aos amigos chegados; este acena
400 -- C'os olhos e cabeça aos companheiros
Que lhe ficam defronte; aquele tapa,
Fingindo que tem tosse, a alegre boca;
Qual foge da presença... mas que vejo!
Tu, Doroteu, carregas sobre os olhos
405 -- As grossas sobrancelhas? Tu enrugas
A testa levantada? Tu inflamas
As faces já desfeitas e suspiras?
Acaso tu presumes que eu murmuro
Do fato de casar o nosso chefe
410 -- A sua terna amásia? Não, amigo,
Eu conheço, também, aonde chegam
Os deveres de quem nasceu fidalgo:
Obrou o nosso chefe o que eu faria.
Murmuro, Doroteu, mas é do dote;
415 -- Do dote, sim, do dote. Dize, a banda,
O castão de coquilho, as mais insígnias,
São dotes que se dêem a um soldado,
Porque serviu ao chefe, em receber-lhe,
Sem vergonha do mundo, a sua amiga?
420 -- Não achas insolência e desaforo
Ver os porta-bandeiras, os cadetes,
E os furriéis já velhos, preteridos
Só para premiar-se com o posto,
Que por lei lhes pertence, um torpe crime?
425 -- São estes, Doroteu, os grandes cabos,
De quem a triste pátria fiar deve
A sua salvação? São estes? Dize...
Agora já te calas. Pois não tornes
A mostrar-me, outra vez, o gesto irado,
430 -- Que um dia hei-de enfadar-me e, se me enfadas,
Ainda que me peças de joelhos,
Não hás-de receber da minha pena,
Em verso ou prosa, mais uma só carta.

27 agosto, 2012

DOANDO GASOLINA


Um homem dirigindo no trânsito, para, e repentinamente, alguém bate no vidro do carro dele. Ele abaixa o vidro e pergunta o que o outro homem quer. O outro homem diz: 'O Presidente Bush foi sequestrado e o resgate é $50 milhões de dólares. Se o resgate não for pago, o sequestrador irá jogar gasolina e atear fogo nele. Nós estamos arrecadando contribuições. Tu gostarias de participar?' O homem no carro pergunta: 'Na média quanto o pessoal está doando?' O outro homem responde: ' Em torno de 5 a 10 litros'.

25 agosto, 2012

A BUSCA DA FELICIDADE

A BUSCA DA FELICIDADE
Árdua, mas prazerosa.
Difícil, porém gostosa.
Busco-a toda instante,
com ideia fixa e constante.
Dormindo sonho com a preciosidade.
Garimpo aonde posso,
às vezes, acho alguns gramas
para o meu dia a dia.
Às vezes, penso em desistir,
pois o pecúlio é pequeno.
Choro de tristeza, penso em não prosseguir.
Choro de alegria, penso em reagir.
Dúvidas, posto à prova, incertezas,
certas vezes quebradas.
Parece um javali indomável,
por mais que eu lute, ele vence.
A busca é estressante,
não há trégua, todo dia, todo instante,
a cada minuto, torna-se irritante!
Por mais que chegue perto,
ela some, por mais que adule, ela se aborrece.
Preso a pensamentos ruins,
tudo foge e escapa de mim.
A esperança na sua iminência,
já me faz, um pouco alegre.
Sou persistente, não posso parar,
Vou continuar. Até aonde vai dar?
A luta vai continuar,
mesmo que eu tenha
que levantar infinitas vezes.
Até em sonhos vou buscá-la,
e não desistirei um só momento.
DO LIVRO: Esperança Ainda Sombria



O NOVO PAI


Dois amigos se encontram, depois de muito tempo distantes:
— Puxa, quanto tempo? Como vão as coisas?
— Eu estou ótimo e você?
— Eu vou ser pai pela primeira vez!
— Que legal! Parabéns! E a sua mulher está feliz?
— Por enquanto está! Mas, na hora que ela souber, vai ficar uma fera!

22 agosto, 2012

POLÍTICOS NO INFERNO

Uma porção de políticos viajava em um avião, quando o capeta aparece de repente e anuncia que vai derrubá-lo.

Foi um corre-corre danado. Em discursos inflamados, deputados declaravam que seria uma perda irreparável para o país, senadores suplicavam por compaixão, líderes se diziam injustiçados.

Mas nada disso comovia o diabo. Até que, em determinado momento, O Sarney pediu a palavra, levantou-se, cochichou algo no ouvido de Satã e este último finalmente resolveu reconsiderar a sua decisão e saiu se desculpando.

Curiosos e aliviados, os políticos foram ao Sarney:

- O que foi que Vossa Excelência disse ao capeta?

- Eu disse apenas que São Luís tem prefeito, mas quem manda lá sou eu; O Maranhão  tem governador, mas quem manda lá sou eu; o Brasil tem presidente, mas quem manda lá sou eu..., e enfatizei: "E o senhor não se iluda, quando morrer vou direto para o inferno!"


10ª CARTA CHILENA



Em que se contam as desordens maiores que Fanfarrão fez no seu governo.

Quis, amigo, compor sentidos versos
A uma longa ausência, e, para encher-me
De ternas expressões, de imagens tristes,
À banca fui sentar-me, com projeto
5 -- De ler, primeiramente, algumas obras
No meu já roto, destroncado Ovídio.
Abri-o nas saudosas elegias;
E, quando me embebia na leitura
Dos casos lastimosos que ele pinta,
10 -- Na passagem que fez ao Ponto Euxínio
Encontro aqueles versos que descrevem
As ondas decumanas; de repente
Me sobe ao pensamento que estas eram
Do nosso Fanfarrão imagem viva.
15 -- Os mares, Doroteu, jamais descansam;
Agitam sem cessar as verdes águas,
E, depois que levantam ondas nove,
Com menos fortidão, despedem outra,
Que corre mais ligeira e que se quebra
20 -- Nos musgosos rochedos com mais força.
Assim o nosso chefe não descansa
De fazer, Doroteu, no seu governo,
Asneiras sobre asneiras; entre as muitas,
Que menos violentas nos parecem,
25 -- Pratica outras que excedem muito e muito
As raias dos humanos desconcertos.
Perdoa, minha Nise, que eu desista
Do intento começado. Tu mil vezes
Nos meus olhos já leste os meus afetos,
30 -- Não careces de os ler nos meus escritos.
Perdoa, pois, que eu gaste as breves horas
A contar as asneiras desumanas
Do nosso Fanfarrão ao caro amigo.
E tu, meu Doroteu, antes que leias
35 -- O que vou a contar-te, jurar deves
Pelos olhos da tua amada esposa,
Por seu louro cabelo, e pelo dia
Em que viste, na sua alegre boca,
O primeiro sorriso, que não hás de
40 -- Duvidar do que leres, bem que sejam
Desordens que pareçam impossíveis.

A Junta, Doroteu, a quem pertence
Evitar contrabandos, prende, envia
À sabia Relação do Continente
45 -- A trinta delinqüentes, para serem
Castigados conforme os seus delitos.
Entende o nosso chefe que esta Junta
Não devia mandar aos malfeitores
Sem sua autoridade, e dela toma
50 -- O mais estranho, bárbaro despique:
Manda embargar aos presos na cadeia
Do nosso Santiago, e manda ao pobre
Do condutor meirinho que os sustente,
Assistindo também aos que enfermarem
55 -- Com médicos, remédios e galinhas.
Acaba-se o dinheiro que lhe deram
Para fazer os gastos do caminho;
Recorre, neste aperto, ao bruto chefe,
Expõe-lhe que não tem com que alimente
60 -- Ao menos a si próprio; pede e roga
Que o deixe recolher à pátria terra,
Para nela exercer seu pobre oficio.
Tão terna rogativa não merece
Do chefe a compaixão; antes lhe ordena
65 -- Que assista, como dantes, aos culpados
De todo o necessário, na enxovia;
Que, a faltar-lhe o dinheiro para os gastos,
Ou que o peça, ou que o furte. Caro amigo,
Da boca de uma Fúria sairia
70 -- Mais dura decisão? Por que motivo
Deve um pobre meirinho dar sustento
A mais de trinta presos? São seus filhos?
E, ainda a serem filhos, um pai justo,
Que fazenda não tem, vive obrigado
75 -- A sustentar infames malfeitores,
Por meio de culpáveis latrocínios?
Suponho, Doroteu, suponho ainda
Que a Junta fez excesso na remessa
Dos presos, sem licença. Neste caso
80 -- Merece o condutor algum castigo?
Ele fez outra coisa que não fosse
Cumprir o que mandaram seus maiores?
Podia repugnar-lhes, sem delito?
Amigo Doroteu, o nosso chefe
85 -- É qual mulher ciosa, que não pode
Vingar no vário amante os duros zelos,
E vai desafogar as suas iras,
Bebendo o sangue de inocentes filhos.
Depois de se passarem alguns anos,
90 -- Depois que o bom meirinho já não tinha
Vestido que vendesse, nem pessoa
Que um chavo lhe fiasse, o bruto chefe
Passa a fazer-um novo despotismo:
Ordena que os culpados sejam soltos,
95 -- E, dizem, lhes mandava vinte oitavas,
Para os gastos fazerem da fugida.
Até aqui pagou o seu desgosto
O pobre condutor; agora o paga
A triste, aflita pátria, pois lhe aumenta
100 -- Dos torpes malfeitores a quadrilha.
É esta, Doroteu, a sua gente;
Trafica em coisa santa, no comércio
Da compra e mais da venda de seixinhos,
Negócio avantajado e mais seguro
105 -- Que o meter entre os fardos das baetas,
Os pesados galões e as drogas finas.
Preza o bravo leão aos leões bravos,
A fraca pomba preza as pombas fracas,
E o homem, apesar do raciocínio,
110 -- Que a verdade lhe mostra, estima aos homens
Que têm iguais paixões e os mesmos vícios.
Avisam ao bom chefe que um ministro
Queria que os soldados lhe mostrassem
As ordens com que entravam a fazerem
115 -- Prisões no seu distrito. Investe o bruto
Qual touro levantado, a quem acenam,
C’os vermelhos droguetes, os capinhas;
Escreve-lhe uma carta, em que lhe ordena
Lhe dê logo as razões, em que se funda.
120 -- Inda pede as razões, e já lhe estranha
O néscio proceder. Aqui não pára
Tão rápida desordem: manda um corpo
De ousados militares, que conduzam
Ao magistrado, a carta, e lhes ordena
125 -- Que fiquem nesta vila sustentados
À custa, Doroteu, do aflito povo.
Não se concede ao pobre que sustente,
Em casa, o seu soldado; manda o chefe
Que a cada um se dê, em cada um dia,
130 -- Para sustento, meia oitava de ouro,
Fora milho e capim para o cavalo,
E não entrando aqui o régio soldo.
Que santo proceder! Um Deus irado,
Se houvessem sete justos, perdoava
135 -- Os imensos delitos de Sodoma,
E o nosso grande chefe, pelo crime,
Pelo sonhado crime de um só homem,
Castiga, como réu de majestade,
Formado de inocentes, todo um povo.

140 -- Faz penhora Macedo em certas barras
Que a um seu devedor devia Mévio;
Recorre ao magistrado Silverino,
Pedindo que mandasse que o dinheiro
A juízo viesse, pois queria
145 -- Sobre ele disputar a preferência,
Na forma que concede a lei do reino.
Cita-se ao triste Mévio, e deposita
As barras em juízo, prontamente.
Conhece Silverino que Macedo
150 -- Para a vitória tem melhor direito;
Não quer seguir a causa na presença
De um reto magistrado, que profere,
Na forma que as leis mandam, as sentenças.

Recorre ao general, e o bruto chefe
155 -- Decide desta sorte o longo pleito:
Habita nesta terra um homem rico,
Que tem de Albino o nome, e, dizem, trata
A Mévio, devedor, por seu sobrinho.
Manda pois, Doroteu, o grande chefe
160 -- Que Albino se recolha na cadeia
E more com os negros na enxovia,
Enquanto não pagar a Silverino
Outra tanta quantia, quanta Mévio
Depositou, doloso, por que houvesse
165 -- Entre os dois acredores um litígio.
Eis aqui, Doroteu, o que é ciência!
As nossas leis não querem que o pai solva
O calote que fez o próprio filho,
E quer um general que Albino pague,
170 -- Da sórdida masmorra, novamente,
A soma que pagou o bom sobrinho!
Aonde existe o dolo? A lei não manda
Que todo o que temer que alguém lhe peça
Segundo pagamento, se segure
175 -- Metendo no depósito o que deve?
Pois se isto nos faculta o são direito,
Que delito comete aquele triste
Que a dívida em juízo deposita,
Quando o sábio juiz assim o manda,
180 -- Porque o mesmo credor assim o pede?
E se Mévio fez dolo, por que causa
Há de Albino pagar a culpa dele?
Porque lhe aconselhou que não pagasse
Outra tanta quantia a Silverino?
185 -- Aconselhar conforme as leis do reino
É culpa que mereça um tal castigo?
E pode ser castigo regulado
Pagar o conselheiro aquela soma
Que o mesmo aconselhado não devia?
190 -- Não é isto furtar? Não é violência?
Ah! pobre, ah! pobre povo, a quem governa
Um bruto general, que ao céu não teme,
Nem tem o menor pejo de lhe verem
Tão indignas ações os outros homens!

195 -- Há neste regimento um moço Adônis,
Amores de uma escrava, cuja dona
Depois de cativar a muitos peitos, 
Ao nosso herói atou, também, ao carro
Dos seus cruéis triunfos. Cego nume!
200 -- Qual é, qual é dos homens que não honra,
Com puros sacrifícios, teus altares?
Tu vences os pequenos, mais os grandes,
Tu vences os estultos, mais os sábios,
Tu, vences, que inda é mais, as mesmas feras,
205 -- E, bem que cinja o grosso peito d'aço,
Não pode resistir às tuas setas
O duro coração do próprio Marte.

Intenta este soldado que o ministro
Lhe remate umas casas, e consegue
210 -- Um despacho do chefe, em que decreta
Que nelas ninguém lance: coisa estranha
Que, entendo, nunca viu nenhuma idade!
O reto magistrado, que respeita,
Mais que ao chefe, as leis do seu monarca,
215 -- Ordena que o porteiro, incontinenti,
As pertendidas casas meta a lanço.
Honrado cidadão o preço cobre;
O porteiro passeia pela rua,
Repete, em alta voz, o lanço novo
220 -- E prossegue a falar, assim dizendo:
"Dou-lhe uma, dou-lhe duas, dou-lhe três,
Dou-lhe outra mais pequena, afronta faço;
Se ninguém mais me oferece, arremato".
Ao lanço do Brandúsio ninguém chega,
225 -- Informado o juiz, ordena e manda
Que o prédio se remate; então se chega
O porteiro risonho ao licitante,
E lhe diz — "que lhe faça bom proveito" —
Ao mesmo tempo que lhe entrega o ramo.
230 -- Parte logo o soldado e conta ao chefe
O sucesso da praça. O bruto monstro,
Julgando profanado o seu respeito,
Manda lançar no pobre licitante
Um pesado grilhão e manda pô-lo,
235 -- Ajoujado com um despido negro,
A trabalhar nas obras da cadeia.
O preso injuriado desfalece
E o chefe desumano desce à rua
Para que possa de mais perto vê-lo.
240 -- Sucede a um desmaio outro desmaio;
O negro companheiro, então, lhe acode,
Nos braços compassivos o sustenta;
Porém o velho chefe, que deseja
O vê-lo ali morrer, por um soldado
245 -- Manda ao negro dizer que ao preso deixe
E cuide em prosseguir no seu trabalho.
Os mesmos desumanos, que rodeiam
Tão bruto general, aqueles mesmos
Que, alegres, executam seus mandados,
250 -- Apenas escutaram tal preceito,
Um pouco emudeceram e tiveram
Os rostos tristes, muito tempo, baixos.
Os outros, Doroteu, deram suspiros
E, bem que forcejaram, não puderam
255 -- Fazer que os olhos não se enchessem d'água.

Eu creio, Doroteu, que tu já leste
Que um César dos romanos pertendera
Vestir ao seu cavalo a nobre toga
Dos velhos senadores. Esta história
260 -- Pode servir de fábula, que mostre
Que muitos homens, mais que as feras brutos,
Na verdade conseguem grandes honras!
Mas ah! prezado amigo, que ditosa
Não fora a nossa Chile, se antes visse
265 -- Adornado um cavalo com insígnias
De general supremo, do que ver-se
Obrigada a dobrar os seus joelhos
Na presença de um chefe, a quem os deuses
Somente deram a figura de homem!
270 -- Então, prezado amigo, o néscio povo
Com fitas lhe enfeitara as negras clinas,
Ornara a estrebaria com tapetes,
Com formosas pinturas, ricos panos,
Bordados reposteiros e cortinas;
275 -- Um dos grandes da terra lhe levara
Licor, para beber, em baldes d'ouro,
Outro lhe dera o milho em ricas salvas;
Mas sempre, Doroteu, aqueles néscios
Que ao bruto respeitassem, poderiam
280 -- Servi-lo acautelados e de sorte
Que dar-lhes não pudesse um leve coice.
Eis aqui, Doroteu, o que nos nega
Uma heróica virtude. Um louco chefe
O poder exercita do monarca
285 -- E os súditos não devem nem fugir-lhe
Nem tirar-lhe da mão a injusta espada.
Mas, caro Doroteu, um chefe destes
Só vem para castigo de pecados.
Os deuses não carecem de mandarem
290 -- Flagelos esquisitos; quase sempre
Nos punem com as coisas ordinárias.
O mundo inda não viu senão um corpo
Em branco sal mudado, e só no Egito
Fez novas penas de Moisés a vara.
295 -- Perguntarás agora que torpezas
Comete a nossa Chile, que mereça
Tão estranho flagelo? Não há homem
Que viva isento de delitos graves,
E, aonde se amontoam os viventes
300 -- Em cidades ou vilas, aí crescem
Os crimes e as desordens, aos milhares.
Talvez, prezado amigo, que nós, hoje,
Sintamos os castigos dos insultos
Que nossos pais fizeram; estes campos
305 -- Estão cobertos de insepultos ossos
De inumeráveis homens que mataram.
Aqui os europeus se divertiam
Em andarem à caça dos gentios
Como à caça das feras, pelos matos.
310 -- Havia tal que dava aos seus cachorros,
Por diário sustento, humana carne,
Querendo desculpar tão grave culpa
Como dizer que os gentios, bem que tinham
A nossa semelhança enquanto aos corpos,
315 -- Não eram como nós enquanto às almas.
Que muito, pois, que Deus levante o braço
E puna os descendentes de uns tiranos
Que, sem razão alguma e por capricho,
Espalharam na terra tanto sangue!


15 agosto, 2012

9ª CARTA CHILENA


Em que se contam as desordens que Fanfarrão obrou no governo das tropas.
Agora, Doroteu, agora estava
Bamboando, na rede preguiçosa,
E tomando, na fina porçolana,
O mate saboroso, quando escuto
5 -- De grossa artilharia o rouco estrondo.
O sangue se congela, a casa treme,
E pesada porção de estuque velho,
À violência do abalo despegada,
Da barriguda esteira faz que eu perca
10 -- A tigela esmaltada, que era a coisa
Que tinha, nesta casa, de algum preço.

Apenas torno em mim daquele susto,
Me lembra ser o dia em que o bom chefe,
Aos seus auxiliares lições dava
15 -- Da que Saxi chamou "pequena guerra".
Amigo Doroteu, não sou tão néscio,
Que os avisos de Jove não conheça.
Castigou, castigou o meu descuido;
Pois não me deu a veia de poeta,
Nem me trouxe, por mares empolados,
20 -- A Chile, para que, gostoso e mole,
Descanse o corpo na franjada rede.

Nasceu o sábio Homero entre os antigos,
Para o nome cantar do grego Aquiles;
Para cantar, também, ao pio Enéias,
25 -- Teve o povo romano o seu Vergílio:
Assim, para escrever os grande feitos
Que o nosso Fanfarrão obrou em Chile,
Entendo, Doroteu, que a Providência
Lançou, na culta Espanha, o teu Critilo.
30 -- Ora pois, Doroteu, eu passo, eu passo
A cumprir, respeitoso, os meus deveres
E, já que o meu herói, agora, adestra
Esquadras belicosas, também hoje
Tomarei por empresa só mostrar-te
35 -- Que ele fez, na milícia, grandes coisas.

Há, nesta capital, um regimento
De tropa regular, a quem se paga.
Tu sabes, Doroteu, que não há corpo
Que todo de iguais membros se componha.
40 -- Das ordens mais austeras, que fizeram
Os santos penitentes patriarcas,
Saíram, contra o trono rebelados,
Os infames Clementes, e saíram
Contra o dogma, os Calvinos e os Luteros;
45 -- O mesmo Apostolado teve um Judas.
Se isto pois, Doroteu, assim sucede
Nos corpos, que se formam de escolhidos,
Que não sucederá, nos grandes corpos,
Aonde se recebem as pessoas
50 -- Que timbre fazem, dos seus próprios vícios?

O meio, Doroteu, o forte meio
Que os chefes descobriram para terem
Os corpos que governam, em sossego,
Consiste em repartirem com mão reta
55 -- Os prêmios e os castigos, pois que poucos
Os delitos evitam, porque prezam
A cândida virtude: os mais dos homens
Aos vícios fogem, porque as penas temem.
Ora ouve, Doroteu, o como o chefe
60 -- Os castigos reparte aos seus guerreiros.

Não há, não há distúrbio nesta terra,
De que mão militar não seja autora.
Chega, prezado amigo, a ousadia
De um indigno soldado a este excesso:
65 -- Aperta, na direita, o ferro agudo
E penetra as paredes de palácio,
No meio de uma sala, aonde estavam
As duas sentinelas, que defendem
Da casa do dossel a nobre entrada.
70 -- Aqui, meu Doroteu, aqui se chega
Ao camarada inerme e, pelas costas,
O deixa quase morto, a punhaladas.

Que esperas tu, agora, que eu te diga?
Que o militar conselho já se apressa?
75 -- Que já se liga ao poste o delinqüente?
Que os olhos com o lenço já lhe cobrem?
Que a bala zunidora já lhe rompe
O peito palpitante? Que suspira?
Que lhe cai, sobre os ombros, a cabeça?
80 -- Meu caro Doroteu, o nosso chefe
É muito compassivo; sim, bem pode
Oprimir os paisanos inocentes
Com pesadas cadeias; pode, ainda,
Ver o sangue esguichar das rotas costas
85 -- À força dos zorragues, mas não pode
Consentir que se dê, nos seus soldados,
Por maiores insultos que cometam,
A pena inda mais leve: assim praticam
Os famosos guerreiros, que nasceram
90 -- Para obrarem, no mundo, empresas grandes.

Ele, sim, bem conhece que não há de
Talar, com estas tropas, as campinas,
Que o céu lhe não concede a esperança
De entrar no templo augusto da Vitória,
95 -- Coberto de poeira e negro sangue.
Mas sempre, Doroteu, as quer propicias,
Pois, inda que não cinjam as espadas,
Para cortar loureiros e carvalhos,
Que a testa lhes circulem, são aquelas
100 -- Que, prontas, executam seus mandados;
São aquelas que infundem, nestes povos,
O medo e sujeição, com que toleram
O verem em desprezo as leis sagradas.

Conhece, Doroteu, o próprio chefe,
105 -- Que vai passando a muito a liberdade
Das fardas atrevidas, e, querendo
A tais desordens pôr remédio e freio,
Não manda que se cumpram as leis santas
Que aos delitos arbitram justas penas.
110 -- Manda, sim, um cartaz, aonde inova
Que, todos os domingos, na parada,
Se leia o militar regulamento.
Indigno e bruto chefe, de que serve
Que se leiam as leis, se os malfeitores
115 -- Do que mandam não vêem um só exemplo!
Tens visto, Doroteu, o como o chefe
Os delitos castiga; agora sabe
Da sorte que reparte aos bons os prêmios.

Morreu um capitão, e subiu logo,
120 -- Ao posto devoluto um bom tenente.
Porque foi, Doroteu? Seria, acaso,
Por ser tenente antigo? Ou porque tinha
Com honra militado? Não, amigo,
Foi só porque largou três mil cruzados!
125 -- Ah! não mudes a cor de teu semblante,
Prudente Maximino! Não, não mudes.
Que importa que comprasses a patente?
Se tu a merecias, a vileza
Da compra não te infama, sim ao chefe,
130 -- Que nunca faz justiça, sem que a venda.
Reforma um capitão e, no seu posto,
Encaixa, sem vergonha, a Tomazine,
Um moço, na milícia pouco esperto,
135 -- Que um ano inda não tinha de tenente.
Em que guerras andou, em que campanhas?
Quais as feridas que no corpo mostra?
Aonde, aonde estão as diligências,
As grandes diligências arriscadas,
Que fez este mancebo, com que possa
140 -- Preferir aos antigos, destros cabos?
Ah! sim, eu já me lembro! Tem serviços,
Tem famosos serviços, na verdade:
A casa deste moço, bem que pobre,
É a casa somente, aonde o chefe
145 -- Entra em ar de visita, bebe e folga.
Aqui tens teu lugar, meu bom Lobésio;
Tu foste a capitão e tu passaste
Ao posto de major em breves meses.
Quais são os teus serviços? Quais? Responde.
150 -- Mas não, não me respondas; eu conheço
Que és tolo, que és brejeiro e, mais, que mandas
As redradas pedrinhas. Estes dotes
Te fazem, no conceito do teu chefe,
Um digno pai da pátria, herói do reino.
155 -- Também tu, ó Padela, te distingues
Na corja dos marotos. Tu conservas
De capitão o cargo, mas tu logras
O soldo de major e mais as honras.
Que foi que te fez digno de subires
160 -- À privança do chefe? Ah! sim, eu vejo
O teu merecimento! É coisa grande:
Ultrajas aos ministros e proteges
A todos os tratantes, que exercitam
O furto e o contrabando. Tu, piedoso,
165 -- Não queres ver perdido um só soldado;
Se algum, se algum consente que se escalem
Os vedados lugares, tu escreves
Ao sucessor honrado e lhe suplicas
Que parte não te dê, de um tal desmancho.
170 -- O teu fidalgo peito não se vence
Da sórdida avareza. Tu repartes
Os luzentes seixinhos c’o teu chefe,
E, bem que o seu Matúsio, em nome dele,
Os ache miudinhos, sempre servem.
175 -- Também tu, digno irmão, também cavalgas
O posto de tenente, por dizeres,
Que honrado comandante, na parada,
Austero te corrige, por falares
Dos retos magistrados, sem respeito.
180 -- Que vezes a cachaça... Mas, amigo,
Deixemos de falar na paga tropa
E vamos a falar do grande corpo
Da gente auxiliar; aqui podemos
Acabar de dizer o mais que falta.

185 -- Tinha este continente, levantados,
De tropa auxiliar uns treze corpos.
O nosso chefe ainda não se farta:
Alista o povo inteiro, e dele forma
Inda mais de quarenta regimentos,
190 -- Mais faminto de ver galões e fardas
Que Midas de trocar em ouro puro
As coisas em que punha o torpe dedo.

O coronel, valente, agarra tudo
Quanto tem de varão a forma e traje;
195 -- Nem lhe obsta, Doroteu, que os seus soldados
Meninos inda sejam; que eles crescem,
E cresce, com os corpos, igualmente,
O santo amor das armas. Muitos, muitos,
Quando vão para a igreja receberem
200 -- As águas salvadoras do batismo,
Já vão vestidos com a curta farda.
Este mesmo costume tem, amigo,
O pago regimento. Apenas nasce
Aos cabos algum filho, logo, à pressa,
205 -- Lhe assenta o chefe de cadete a praça
Venturoso costume, que promete
Produzir, de cordeiros, tigres bravos!
Aníbal, Doroteu, desde menino
Com seu pai militou; talvez não fosse
210 -- O terror dos romanos, se passasse
A tenra, inda imberbe mocidade,
Entre os moles prazeres de Cartago.
Contudo, Doroteu, o céu permita
Que guerras não tenhamos; pois, a termos
215 -- Algum acampamento, que constranja
A saírem da praça os regimentos,
Há de haver bom trabalho em conduzir-se
O rancho de crianças em jacases.
Há de, também, haver despesa grande
220 -- Em levar-se uma tropa de mulheres,
Que dêem o peito a uns e a outros papa.
Tu sabes, Doroteu, que as nossas tropas
De infantaria são, porém montada;
Que as leis do nosso reino não consentem
225 -- Que estas montadas tropas se componham
De membros, que não tenham certas rendas,
Com que possam manter os seus cavalos.
Ora ouve, Doroteu, quais são as posses
Dos míseros paisanos, que se alistam
230 -- Nos fortes regimentos: quase todos
Um sendeiro não têm, e muitos deles
Gemeram nas prisões, por não poderem
Ajeitar uma grossa e curta farda.
Eu topei, Doroteu, por várias vezes,
235 -- Atrás de um regimento, os rapazinhos
Em veste e mais descalços: fina idéia
Em que deram os cabos, para verem
Se, à força de vergonha, se fardavam.
Eu sei, eu sei, amigo, que alguns destes,
240 -- Cansados de sofrerem mais opróbrios,
Fizeram fardamentos dos produtos
Dos únicos escravos que venderam
E dos trastes alheios, que furtaram.
Perguntarás, agora, doce amigo:
245 – "Aonde estão os ricos taverneiros?
Aonde os mercadores, que têm lojas
A que chamam de seco e de molhado?"
Aonde, Doroteu? Eu já to digo:
Estão, estão também nos regimentos,
250 -- Mas trazem nas direitas, que conservam
Inda lixosas peles, as bengalas.
Não rias, Doroteu, das nossas tropas.
De que gente formou um corpo invicto
O luso Viriato? Foi de moços
255 -- Criados, desde a infância, nas campanhas?
Não foi, meu Doroteu, foi de uns pastores,
De uns pastores incultos, que, animados
Do esforço do seu chefe, conseguiram
Vitórias singulares, contra um povo
260 -- Que ao mundo sujeitou, à força de armas.
Os homens, Doroteu, são todos fortes
Em cima das muralhas, que defendem
As chorosas mulheres e as fazendas,
Os ternos filhos e os avós cansados.
265 -- A desordem, amigo, não consiste
Em formar esquadrões, mas, sim, no excesso.
Um reino bem regido não se forma
Somente de soldados; tem de tudo:
Tem milícia, lavoura, e tem comércio.
270 -- Se quantos forem ricos se adornarem
Das golas e das bandas, não teremos
Um só depositário, nem os órfãos
Terão também tutores, quando nisto
Interessa, igualmente, o bem do império.
275 -- Carece a monarquia dez mil homens
De tropa auxiliar? Não haja embora
De menos um soldado, mas os outros
Vão à pátria servir nos mais empregos,
Pois os corpos civis são como os nossos,
280 -- Que, tendo um membro forte e outros débeis,
Se devem, Doroteu, julgar enfermos.

É também, Doroteu, contra a polícia
Franquearem-se as portas, a que subam
Aos distintos empregos as pessoas
285 -- Que vêm de humildes troncos. Os tendeiros,
Mal se vêem capitães, são já fidalgos;
Seus néscios descendentes já não querem
Conservar as tavernas, que lhes deram
Os primeiros sapatos e os primeiros
290 -- Capotes com capuz de grosso pano.
Que império, Doroteu, que império pode
Um povo sustentar, que só se forma
De nobres sem ofícios? Estes membros
Não amam, como devem, as virtudes,
295 -- Seguem à rédea solta os torpes vícios.
Daqui saem os torpes malfeitores,
Os vis alcoviteiros, os perjuros,
Os famosos ladrões; numa palavra,
A tropa insultadora de vadios.

300 -- A este corpo imenso de milícia
Concede Fanfarrão as regalias
Que as nossas leis não dão aos bons vassalos,
Que chegam aos empregos mais honrosos,
Em paga de proezas e serviços.
305 -- Não quer, não quer o chefe, que aos seus cabos
Mandem citar os tristes acredores
Por ordem de justiça. Quais os grandes,
Que não vêm a juízo sem licença
Do príncipe, a quem servem, nesta terra,
310 -- Sem licença do chefe não se citam
Os negros, os crioulos e os mulatos,
Mal vestem a fardinha e, muito menos,
Mal cingem, na cintura, honrosa banda.
Se alguém requer ao chefe que permita
315 -- Para isso faculdade, põe-lhe em cima
De humilde petição, que o suplicado
Componha ao suplicante o que lhe deve.
Se diz o suplicado ao suplicante
Que não lhe deve nada, foi-se embora
320 -- O sólido direito, que a policia
Do chefe não consente que se ponha
Aos seus oficiais, inda que sejam
Velhacos e ladrões, no foro, um pleito.

Já viste regalia igual a esta?
325 -- A pátria, Doroteu, concede aos nobres,
Que os postos exercitam, grossas rendas,
Com que possam pagar, aos mais vassalos
As coisas que lhes compram; não concede
Ao mesmo general que vista e coma,
330 -- À custa do suor dos outros homens.
E quando o rei não quer pagar a todos,
Com dinheiro contado, remunera
Os serviços com graças, mas daquelas
Que deixam sempre intacto o jus alheio.

335 -- Não são somente isentos da justiça
Os cabos valerosos. Onde habitam,
Se acolhem, Doroteu, os malfeitores,
E, quais antigas casas de fidalgos,
Ou famosos conventos, que, na porta,
340 -- Têm as grossas cadeias, onde pegam
Os míseros culpados, aqui todos
Se livram dos meirinhos, bem que sejam
Indignos, torpes réus de magistrado.

Se os ousados meirinhos entrar querem
345 -- Nas casas destes cabos, a que chamam
Militares quartéis, os fortes donos
Encaixam nas cabeças os casquetes,
Apertam as correias, põem as bandas
E, cingindo as torcidas, largas folhas,
350 -- Ultrajam com palavras a justiça,
Resistem, gritam, ferem, matam, prendem.

Os zelosos juízes punir querem
A injúria da justiça: formam autos,
Procedem às devassas, pronunciam,
355 -- E mandam que estes nomes se descrevam
Nos róis dos mais culpados. Mas, amigo,
De que serve fazer-se o que as leis mandam
Na terra que governa um bruto chefe,
Que não tem outra lei mais que a vontade?
360 -- O chefe onipotente logo envia
Atrevidos soldados, que, chegando
À casa do escrivão, os nomes riscam
Do rol dos delinqüentes e lhe arrancam
Da fechada gaveta os próprios autos.
365 -- Ousado, indigno chefe, que governo,
Que governos nos fazes? A milícia
Ergueu-se para guarda dos vassalos,
E tu, e tu trabalhas, por que seja
A mesma que nos prive do sossego
370 -- Que, próvidas, nos dão as leis sagradas.
Agora, Doroteu, talvez trabalhes
Em achar o motivo por que o chefe
Concede tanto indulto aos seus soldados;
Pois ele, Doroteu, não é o enigma,
375 -- Que vem nos doces versos de Vergílio,
De umas flores, que têm de reis os nomes
Escritos sobre as folhas, e do sitio
De que três braças só do céu se avista.
O chefe, Doroteu, só quer dinheiro;
375 -- E, dando aos militares regalias,
Podem os grandes postos, que lhes vende,
Subir à proporção, também, de preço.
Tu assim o conheces, Cata Preta,
Pois deste mil oitavas, por trazeres
385 -- Lavrado castão de ouro sobre a cana.
Tu também, Capanema, assim discorres,
Pois largaste seiscentas, por vestires
De capitão maior vermelha farda.
Todos assim o julgam. Ah! só pensa
390 -- De diversa maneira aquele néscio
Que sofreu que Matúsio lhe rompesse
A passada patente à sua vista,
Por não largar, de luvas, os trezentos.
Dize-me, Doroteu, um chefe sábio
395 -- Levanta nas conquistas umas tropas,
Com que não pode a força do distante
Conquistador império? Infunde, inspira
Nos cabos tanto orgulho, que se atrevam
A resistir aos mesmos magistrados,
400 -- Que a pessoa do augusto representam?
Maldito, Doroteu, maldito seja
Um bruto, que só quer a todo custo,
Entesourar o sórdido dinheiro.


14 agosto, 2012

8ª CARTA CHILENA


Em que se trata da venda dos despachos e contratos.

Os grandes, Doroteu, da nossa Espanha
Têm diversas herdades: uma delas
Dão trigo, dão centeio e dão cevada;
As outras têm cascatas e pomares,
5 -- Com outras muitas peças, que só servem,
Nos calmosos verões, de algum recreio.
Assim os generais da nossa Chile
Têm diversas fazendas: numas passam
As horas de descanso, as outras geram
10 -- Os milhos, os feijões e os úteis frutos
Que podem sustentar as grandes casas.
As quintas, Doroteu, que mais lhes rendem,
Abertas nunca são do torto arado.
Quer chova de contínuo, quer se gretem
15 -- As terras, ao rigor do sol intenso,
Sempre geram mais frutos do que as outras,
No ano em que lhes corre, ao próprio, o tempo.
Estas quintas, amigo, não produzem
Em certas estações, produzem sempre,
20 -- Que os nossos generais, tomando a foice,
Vão fazer, nas searas, a colheita.
Produzem, que inda é mais, sem que os bons chefes
Se cansem com amanhos, nem ainda
Com lançarem nos sulcos as sementes.
25 -- Agora dirás tu, de assombro cheio:
"Que ditosas campinas! Dessa sorte
Só pintam os Elíseos os poetas."
Amigo Doroteu, és pouco esperto;
As fazendas que pinto não são dessas
30 -- Que têm, para as culturas, largos campos
E virgens matarias, cujos troncos
Levantam, sobre as nuvens, grossos ramos.
Não são, não são fazendas onde paste
O lanudo carneiro e a gorda vaca,
35 -- A vaca, que salpica as brandas ervas
Com o leite encorpado, que lhe escorre
Das lisas tetas, que no chão lhe arrastam.
Não são, enfim, herdades, onde as louras 
Zunidoras abelhas de mil castas,
40 -- Nos côncavos das árvores já velhas,
Que bálsamos destilam, escondidas,
Fabriquem rumas de gostosos favos.
Estas quintas são quintas só no nome,
Pois são os dois contratos, que utilizam
45 -- Aos chefes, inda mais que ao próprio Estado.

Cada triênio, pois, os nossos chefes
Levantam duas quintas ou herdades,
E, quando o lavrador da terra inculta
Despende o seu dinheiro, no princípio,
50 --Fazendo levantar, de paus robustos,
As casas de vivenda e, junto delas,
Em volta de um terreiro, as vis senzalas,
Os nossos generais, pelo contrário,
Quando estas quintas fazem, logo embolsam
55 -- Uma grande porção de louras barras.

A primeira fazenda, que o bom chefe
Ergueu nestas campinas, foi a grande
Herdade, que arrendou ao seu Marquésio.
As línguas depravadas espalharam
60 -- Que, para o tal Marquésio entrar de posse,
Largara ao grande chefe, só de luvas,
Uns trinta mil cruzados; bagatela!
Os mesmos maldizentes acrescentam
Que o pançudo Robério fora aquele
65 -- Que fez de corretor no tal contrato.
Amigo Doroteu, eu tremo e fujo
De encarregar minha alma. O bom Vergílio
Talvez, talvez que aflito se revolva,
No meio da fogueira devorante,
70 -- Por dizer que adorara ao pio Enéias
Uma casta rainha, cujos ossos
Estavam no sepulcro, já mirrados,
Havia coisa de trezentos anos.
Eu não te afirmo, pois, que se fizesse
75 -- A venda vergonhosa; só te afirmo
Que o mundo assim o julga, e que esta fama
Não deixa de firmar-se em bons indícios.
As leis do nosso reino não consentem
Que os chefes dêem contratos, contra os votos
80 -- Dos retos deputados que organizam
A Junta de Fazenda, e o nosso chefe
Mandou arrematar ao seu Marquésio
O contrato maior, sem ter um voto
Que favorável fosse aos seus projetos.
85 -- As mesmas santas leis jamais concedem
Que possa arrematar-se algum contrato
Ao rico lançador, se houver na praça
Um só competidor de mais abono;
E o nosso general mandou se desse
90 -- O ramo ao lançador, que apenas tinha
Uns vinte mil cruzados, em palavra,
Deixando preterido outro sujeito
De muito mais abono, e a quem devia
Um grosso cabedal o régio erário.
95 -- Mal acaba Marquésio o seu triênio,
Outro novo triênio lhe arremata,
Sem que um membro da Junta em tal convenha;
E, tendo o tal Marquésio, no contrato,
Perdido grandes somas, lhe dispensa
100 -- Outras fianças dar à nova renda.
Amigo Doroteu, o nosso chefe,
Que procura tirar conveniência
Dos pequenos negócios e despachos,
Daria este contrato ao bom Marquésio,
105 -- Este grande contrato, sem que houvesse
De paga equivalente ajuste expresso?
Amigo Doroteu, se não sou sábio,
Não sou, também, tão néscio, que nem saiba
Das premissas tirar as conseqüências.
110 -- Agora dirás tu: "Se o patrimônio
De Marquésio consiste, como afirmas,
Em vinte mil cruzados, em palavra,
Como, de luvas, deu ao chefe os trinta?"
Amigo Doroteu, estou pilhado;
115 -- A palavra, que sai da boca fora,
É como a calhoada, que se atira,
Que já não tem remédio. Paciência.
Eu as ervas arranco, e, desde agora,
Contigo falarei com mais cautela.
120 -- Mas que vejo? Tu ris-te? Acaso pensas
Que me tens apanhado na verdade?
A mim nunca apanharam os capuchos,
Quando, no raso assento, defendia
Que a natureza não tolera o vácuo,
125 -- Que os cheiros são ocultas entidades,
Com outras mil questões da mesma classe.
E tu, meu doce amigo, pertendias
Convencer-me em matéria em que dar posso
A todos, de partido, a sota e o basto?
130 -- Desiste, Doroteu, do louco intento,
Faze uma grande cruz na lisa testa,
Dá figas ao demônio, que te atenta.
Ora ouve a solução desse argumento:
Bem que pingante seja quem remata
135 -- Este grande contrato, mercadeja
Com perto de um milhão; por isso todos
Lhe emprestam prontamente os seus dinheiros.

Os chefes, Doroteu, que só procuram
De barras entulhar as fortes burras,
140 -- Desfrutam juntamente as mais fazendas,
Que os seus antecessores levantaram.
Nem deixam descansar as férteis terras
Enquanto não as põem em sambambaias.
Aqui agora tens, meu Silverino,
145 -- O teu próprio lugar. Tu és honrado,
E prezas, como eu prezo, a sã verdade;
Por isso nos confessas que tu ganhas
A graça deste chefe, porque envias,
Pela mão de Matúsio, seu agente,
150 -- Em todos os trimestres, as mesadas.
Eu sei, meu Silverino, que quem vive
Na nossa infeliz Chile, não te impugna
Tão notória verdade. Porém deve
Correr estranhos climas esta história,
155 -- E, como tu não vás, também, com ela,
É justo que lhe ponha algumas provas.

A sábia lei do reino quer e manda
Que os nossos devedores não se prendam.
Responde agora tu, por que motivo
160 -- Concede o grande chefe que tu prendas
A quantos miseráveis te deverem?
Porquê, meu Silverino? Porque largas,
Porque mandas presentes, mais dinheiro.
As mesmas leis do reino também vedam
165 -- Que possa ser juiz a própria parte.
Responde agora mais: por que princípio
Consente o nosso chefe que tu sejas
O mesmo que encorrente a quem não paga?
Porque, meu Silverino? Porque largas,
170 -- Porque mandas presentes, mais dinheiro.
Os sábios generais reprimir devem
Do atrevido vassalo as insolências;
Tu metes homens livres no teu tronco,
Tu mandas castigá-los, como negros;
175 --Tu zombas da justiça, tu a prendes;
Tu passas portarias ordenando
Que com certas pessoas não se entenda.
Porquê, por que razão o nosso chefe
Consente que tu faças tanto insulto,
180 -- Sendo um touro, que parte ao leve aceno?
Porquê, meu Silverino? Porque largas,
Porque mandas presentes, mais dinheiro.

A lei do teu contrato não faculta
Que possas aplicar aos teus negócios
185 -- Os públicos dinheiros. Tu, com eles,
Pagaste aos teus credores grandes somas!
Ordena a sábia Junta que dês logo
Da tua comissão estreita conta;
O chefe não assina a portaria,
190 -- Não quer que se descubra a ladroeira,
Porque te favorece, ainda à custa
Dos régios interesses, quando finge
Que os zela muito mais que as próprias rendas.
Porquê, meu Silverino? Porque largas,
195 -- Porque mandas presentes, mais dinheiro.
Apenas apareces... Mas não posso
Só contigo gastar papel e tempo.
Eu já te deixo em paz, roubando o mundo,
E passo a relatar ao caro amigo
200 -- Os estranhos sucessos que ainda faltam;
Nem todos lhe direi, pois são imensos.

Pertende, Doroteu, o nosso chefe
Mostrar um grande zelo nas cobranças
Do imenso cabedal que todo o povo,
205 -- Aos cofres do monarca, está devendo.
Envia bons soldados às comarcas,
E manda-lhe que cobrem, ou que metam,
A quantos não pagarem, nas cadeias.
Não quero, Doroteu, lembrar-me agora
210 -- Das leis do nosso augusto; estou cansado
De confrontar os fatos deste chefe
Com as disposições do são direito;
Por isso pintarei, prezado amigo,
Somente a confusão e a grã desordem
215 -- Em que a todos nos pôs tão nova idéia.

Entraram nas comarcas os soldados,
E entraram a gemer os tristes povos.
Uns tiram os brinquinhos das orelhas
Das filhas e mulheres; outros vendem
220 -- As escravas, já velhas, que os criaram,
Por menos duas partes do seu preço.
Aquele que não tem cativo, ou jóia,
Satisfaz com papéis, e o soldadinho
Estas dívidas cobra, mais violento
225 -- Do que cobra a justiça uma parcela
Que tem executivo aparelhado,
Por sábia ordenação do nosso reino.
Por mais que o devedor exclama e grita
Que os créditos são falsos, ou que foram
230 -- Há muitos anos pagos, o ministro
Da severa cobrança a nada atende;
Despreza estes embargos, bem que o triste
Proteste de os provar incontinenti.

Não se recebem só, prezado amigo,
235 -- Os créditos alheios, para embolso
Das dívidas fiscais. O soldadinho
Descobre um ramo, aqui, de bom comércio:
Aquele que não quer propor demandas
Promete-lhe a metade, ou mais ainda,
240 -- Das somas que lhe entrega, e ele as cobra
Fingindo que as tomou em pagamento
Das dívidas do rei. Ainda passa
A mais esta desordem: faz penhoras
E manda arrematar, ao pé da igreja,
245 -- As casas, os cativos, mais as roças.

Agora, Fanfarrão, agora falo
Contigo, e só contigo. Por que causa
Ordenas que se faça uma cobrança
Tão rápida e tão forte contra aqueles
250 -- Que ao erário só devem tênues somas?
Não tens contratadores, que ao rei devem,
De mil cruzados centos e mais centos?
Uma só quinta parte, que estes dessem,
Não matava do erário o grande empenho?
255 -- O pobre, porque é pobre, pague tudo,
E o rico, porque é rico, vai pagando
Sem soldados à porta, com sossego!
Não era menos torpe, e mais prudente,
Que os devedores todos se igualassem?
260 -- Que, sem haver respeito ao pobre ou rico,
Metessem, no erário, um tanto certo,
À proporção das somas que devessem?
Indigno, indigno chefe! Tu não buscas
O público interesse. Tu só queres
265 -- Mostrar ao sábio augusto um falso zelo,
Poupando, ao mesmo tempo, os devedores,
Os grossos devedores, que repartem
Contigo os cabedais, que são do reino.

Talvez, meu Doroteu, talvez que entendas
270 -- Que o nosso Fanfarrão estima e preza
Os rendeiros que devem, por sistema:
Só para ver se os ricos desta terra,
À força de favores animados,
Se esforçam a lançar nas régias rendas.
275 -- Amigo Doroteu, o nosso chefe,
Se faz alguma coisa, é só movido
Da loucura, ou do sórdido interesse.
Eu vou, prezado amigo, eu vou mostrar-te
Esta santa verdade, com exemplos.

280 -- Morre um contratador e se nomeia,
Para tratar dos bens, um seu parente,
Que Ribério se chama. Não te posso
Explicar o fervor com que Ribério
Demanda os devedores, vence e cobra
285 -- Os cabedais dispersos desta herança.
Estava quase extinto o que devia
À fazenda do rei; então o chefe
Lhe ordena satisfaça todo o resto,
No peremptório termo que lhe assina.
290 -- Exclama o bom Ribério que não pode,
Pois todo o cabedal, que tem cobrado,
Ou está, nas demandas, consumido,
Ou tem entrado já no régio erário.
E, para bem mostrar esta verdade,
295 -- Suplica ao grande chefe, que lhe escolha
Um reto magistrado, que lhe tome,
Da sua comissão estreita conta.
Pois isto, Doroteu, não vale nada:
Sem contas lhe tomarem, manda o chefe
300 -- Que gema na cadeia, até que pague.
Já viste uma insolência semelhante?
Aos grandes devedores, não se assinam
Os termos peremptórios para a paga,
Nem vão para as cadeias, bem que comam
305 -- A fazenda do rei; e só Ribério,
Sendo um procurador que nada deve,
Vai viver na prisão por tempos largos?
Amigo Doroteu, o nosso chefe
Patrocina aos velhacos, que lhe mandam,
310 -- Para que mais lhe mandem. Prende e vexa
Aos justos, que entesouram suas barras,
Para ver se, oprimidos, se resolvem
A seguir os caminhos dos que largam.

Remata-se um contrato a um sujeito,
315 -- Que o pode bem pagar, por mais que perca;
Pertende um fiador deste contrato
Ir tratar, no Peru, do seu comércio;
Vai licença pedir ao grande chefe,
E o chefe lha concede. Escuta agora;
320 -- Ouvirás uma ação, a mais indigna
De quantas, por marotos, se fizeram:
Apenas o tal homem sai da terra,
Se despede uma esquadra de soldados
Que, mal com ele topa, lhe dá busca.
325 -- As cargas se revolvem, nem lhe escapam
As grosseiras cangalhas, que se quebram.
Não acham contrabandos, porém, sempre
Lhe tomam os dinheiros que ele leva.
E o grande chefe ordena que se metam
330 -- No régio erário todos, inda aqueles,
Que são de vários donos. Dize, amigo,
Já viste uma injustiça assim tão clara?
Aos grossos devedores não se tomam
Os seus próprios dinheiros, bem que tenham
335 -- Comido os cabedais dos seus contratos
E, ao simples fiador de um rematante,
Que nada ainda deve, e que tem muito,
Vão-se, à força, tomar os seus dinheiros,
E os dinheiros, que é mais, de estranhas partes!
340 -- Agora, Doroteu, não tens que digas,
Hás de, enfim, confessar, que o nosso chefe
Somente não oprime a quem lhe larga. 
Ora, ouve as circunstâncias que inda acrescem
E que inda afeiam mais o torpe caso:
345 -- Espalham as más línguas, que Matúsio
Pedira ao tal sujeito lhe comprasse
Uns finos guardanapos e toalhas;
Que o fiador mesquinho lhos trouxera
E, vendo que Matúsio se esquecia,
350 -- Lhe chegou a pedir, sem pejo, a paga.
Que o chefe, ressentido desta injúria,
Lhe mandou dar a busca por vingança,
E que até ao presente inda não consta
Que o preço da encomenda se pagasse.
355 -- Que mais pode fazer o seu lacaio?
Isto não é mais feio que despir-se
A preciosa capa ao grande Jove
E mandar-se tirar ao sábio filho,
O famoso Esculápio, as barbas de ouro?

360 -- Amigo Doroteu, se acaso vires,
Na corte, algum fidalgo pobre e roto,
Dize-lhe que procure este governo;
Que, a não acreditar que há outra vida,
Com fazer quatro mimos aos rendeiros,
365 -- Há de à pátria voltar, casquilho e gordo.